Referências
O presente artigo busca avaliar como as relações entre o Estado e as formas populares de arte se estabeleciam e se reconfiguravam através da censura teatral. Para isso, escolhemos analisar a peça O Retrato de Luciano, que passou pela censura do Departamento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo em julho de 1959. Essa apresentação teatral nos parece paradigmática para demonstrar como se dava a busca pelo monopólio da violência simbólica legítima em um sistema de alianças policlassistas, inaugurado pela ascensão das massas urbanas à esfera pública, relevante a partir da década de 30.
Abstract
This article intends to evaluate how the relation between the State and the popular forms of art were reconfigurated by the censorship. In order to do this, we will analyze the censorship in the play O Retrato de Luciano. We will demonstrate how the search for the monopoly of the legitimate symbolic violence worked inside a new system of relationship inaugurated in the decade of thirty.
Introdução
Muitos autores acreditam que o campo da política se vale, em diversas ocasiões, de ações com caráter muito mais simbólico do que propriamente efetivo para estabelecer certas relações entre as classes sociais. Isso porque as ações de força simbólicas são “capazes de disputar a construção e a difusão de ‘discursos fortes’ junto a imagens fortes, frutos dos arranjos de poder que compareceram para produzi-los” (Sánchez, 2001, p. 2). Desta forma, é por isso que certas ações governamentais são defendidas veementemente, mesmo quando seus resultados reais não compensam o gasto com as operações que estas exigem.
Essa afirmação é especialmente válida quando tratamos do período histórico brasileiro em que a política populista dava o tom das relações entre as classes. Isso porque, pela primeira vez na história nacional, as massas populares passam a figurar como atores relevantes na esfera pública. De acordo com Weffort, “se a pressão popular sobre as estruturas do Estado pôde ser apenas sentida pelas minorias dominantes na etapa anterior a 1930, na etapa posterior, ela se tornará rapidamente um dos elementos centrais do processo político” (Weffort, 2003, p. 76).
A importância das massas urbanas cresce a tal ponto no período de 1945 a 1964, que o populismo do período pode ser definido, em suas formas espontâneas, como “uma forma popular de exaltação de uma pessoa que aparece como a imagem desejada para o Estado” (Weffort, 2003, p. 38). E é por isso que a massa, em contrapartida:
abandona-se a ele, entrega-se à sua direção e, em grande medida, ao seu arbítrio (...). A massa confia no líder e cabe a ele manter essa confiança. Qualquer ação discrepante pode avariar a imagem que legitima seu poder e se ele pode restabelecê-la; isto se deve menos às explicações racionais que possa oferecer que às novas ações que possam restabelecer a confiança
(Weffort, 2003, p. 44).
E é em nome dessa manutenção da confiança simbólica que, muitas vezes, a censura atuou sobre peças teatrais no período. No presente artigo, analisaremos a ação censória na peça O Retrato de Luciano, de Vicente Eduardo Scrivano, que passou pelo processo de censura do Departamento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo em julho de 1959. Essa peça foi escolhida para análise porque nos parece paradigmática para revelar como as relações entre o Estado e as formas populares de arte2 se estabeleciam e se reconfiguravam através da censura neste período. Citaremos também, posteriormente, outras peças em que um sistema de relações análogo a este é estabelecido.
Corpus de pesquisa e metodologia:
O material de pesquisa analisado está alocado no Arquivo Miroel Silveira, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O arquivo possui mais de seis mil processos de censura teatral, cobrindo o período de 1927 a 1972. O presente artigo faz parte do eixo temático de pesquisa “O poder e a fala na cena paulista”, sob a orientação e coordenação da Profa. Dra. Mayra Rodrigues Gomes. O eixo tem como foco de estudo as palavras censuradas e, a partir delas, buscamos compreender as razões que motivaram o censor a vetar determinadas expressões em detrimento de outras possíveis.
O levantamento dos possíveis motivos do corte das expressões estudadas se baseia em três procedimentos básicos. O primeiro é o levantamento das possibilidades semânticas daquelas palavras. Muitas vezes, porém, as significações imediatas dos termos não determinam a ação do censor e, por causa disso, precisamos examinar os elementos transfrásticos que habitam os discursos. E para isso é necessário um levantamento sócio-histórico para averiguar quais são as conexões existentes entre a palavra examinada e o quadro cultural de sua emissão na época em que a censura a vetou. A terceira fase deste procedimento consiste, justamente, no confronto das outras duas fases. Ou seja, confronta-se o que a palavra em sua inserção na peça escrita pode significar ou subentender com o contexto da palavra vetada em termos do quadro social levantado.
Esta metodologia diz respeito a um viés da análise do discurso, a saber, a análise arqueológica do discurso. “Esta terminologia a vincula às idéias de Michel Foucault e também a um plano de análise que vai buscar na plataforma cultural, nas estratificações ou matrizes assentadas em determinado tempo e lugar, as razões de ser de uma significação especial das expressões e palavras vetadas” (Gomes, 2008).
Outro aporte teórico complementar à análise do discurso será fornecido pela teoria das implicitações de Oswald Ducrot, baseada nos conceitos de pressupostos e subentendidos. Um pressuposto diz respeito às condições lógicas de existência de um enunciado. Os subentendidos, por sua vez, remetem ao contexto de leitura por parte do espectador (Gomes, 2008).
Estudo de caso: O Retrato de Luciano e a criação de esferas simbólicas de poder
A peça O Retrato de Luciano nos parece paradigmática para entendermos como a censura proporcionava uma blindagem simbólica em torno de termos que pudessem desmerecer o trabalho governamental ou macular a confiança simbólica depositada nas esferas e instituições de poder. Analisaremos mais detidamente esse caso para, em seguida, ampliarmos o corpus de trabalho com peças cuja censura age de forma análoga.
O retrato de Luciano conta a história de um rapaz que era constantemente defendido por sua mãe, mesmo não sendo um excelente garoto. Durante toda a sua vida, ele sempre foi muito mimado e, por causa disso, não aprendera a lidar com as diferentes situações da vida e era enganado facilmente. Por mais de uma vez, ele havia investido muito dinheiro em negócios cujos sócios lhe roubavam e acabavam por levar-lhe à falência. Em uma dessas ocasiões, compra uma fábrica de camisas fantasma e, sem poder pagar por isso, é obrigado a fugir para a casa de uma tia que morava no interior para escapar da dívida. Lá, a mulher o encoraja a fazer tudo o que ele não havia feito em sua infância: tomar chuva, montar cavalo, pular no rio. E como, segundo as próprias palavras de Luciano, “antes de ser homem, a gente deve ser muleque de rua... caso contrário, a gente acaba ficando boneca de salão, sem querer...”, o garoto cresce e começa a perder sua inocência com os negócios. No final da peça, ele salva seu tio de fazer uma má venda e vira o herói da família.
Essa peça faz parte do circuito de teatro amador da época na cidade de São Paulo. Aproximadamente 20% do Arquivo Miroel Silveira é composto por montagens oriundas de grupos amadores ou de circos teatros, o que corresponde a aproximadamente 1.161 peças. De acordo com Roseli Fígaro, “esses dados caracterizam a existência de um circuito cultural alternativo na cidade de São Paulo (...) que faziam parte da programação de sociedades, igrejas, grêmios e clubes que davam acesso à participação popular” (2006, p. 91).
A professora divide, ainda, a existência desses grupos amadores, em três fases distintas – que muitas vezes coexistiram. A primeira delas se localiza no final do século XIX e é impulsionada pela vinda de imigrantes europeus para o Brasil. Era o caso, por exemplo, dos filodramáticos italianos: grupos de imigrantes que se organizavam em sociedades que promoviam projetos de ajuda mútua e de unificação, fortemente influenciados por ideais republicanos, socialistas, anarquistas e igualitários. “Os grupos de teatro que eram libertários tinham como objetivo dar assistência cultural e dar noções sobre as condições de trabalho aos conterrâneos que chegavam ao Brasil” (Fígaro, 2006, p. 88). Tinham, portanto, um ideário bastante politizante.
Uma segunda fase do circuito de teatro amador na cidade, iniciada nas primeiras décadas do século XX, se caracteriza pelo esvaziamento do conteúdo político e pela concepção do teatro como puro entretenimento. Eram apresentações promovidas por grupos externos à elite econômica e intelectual do país, mas que contribuíram para a “formação de um público diferenciado, realmente popular, desvinculado das rodas de poder da elite cultural” (Fígaro, 2006, p. 94).
Nessa fase, a maior parte das encenações versava sobre temas familiares, tais como o relacionamento entre os casais, a autoridade do pai e o comportamento da mulher. Ainda segundo Fígaro, nota-se uma total ausência de temas políticos nas fases de maior endurecimento político no país.
As experiências realizadas pelo Teatro de Arena, pelo Oficina, pelo TUCA, entre outros, inauguram uma nova proposta para o teatro amador. Eles apontam para uma renovação da linguagem, notabilizando-se como movimentos de resistência e luta política infiltrados na cultura.
Diante do exposto, podemos classificar O Retrato de Luciano como pertencente à segunda fase do circuito de teatro alternativo da cidade de São Paulo. Como se pode notar por sua estória, a peça conta um enredo familiar e não contém críticas políticas ou sociais contundentes. Um simples comentário de Luciano em tom de deboche, entretanto, fez com que a censura julgasse necessário intervir com um corte, na palavra “cofape”. Na cena em questão, Luciano está explicando para sua irmã por que seu mais novo investimento, os caixões de papelão Luciano, seriam tal sucesso de mercado que justificaria um enorme investimento e um pouco de sacrifício de sua família:
“Luciano: Será por alguns meses, apenas. Você não vai casar-se amanhã. E depois, vocês podem esperar. O Brasil, não. Minha causa é uma causa nacional. Todos vão ser embalados em caixas de papelão... 60 milhões de brasileiros enterrados nos confortáveis caixões Luciano. Vocês podem esperar. Os brasileiros precisam morrer; não podem esperar pelo seu casamento. O sabão, o macarrão, os perfumes, os azeites... os azulejos... você quer parar o Brasil... quer ser julgada pelo tribunal de segurança? Lá não há marmelada. Você não pensa que está lidando com a Cofape. E os norte americanos?! São 180 milhões enterrados nos confortáveis caixões de papelão Luciano”.
O grande problema presente no trecho é o de que, para enaltecer o trabalho do Tribunal de Segurança3, Luciano utiliza o recurso de tratar outro órgão do governo – a COFAP4 – de forma irônica. E é justamente esse tom que denuncia certa ineficiência dessa comissão que parece ter incomodado a censura. O Tribunal de Segurança não mais existia em 1959, mas a COFAP, mesmo popularmente conhecida por medidas pouco eficientes (como indica a fala de Luciano), ainda possuía um papel simbólico importante para o governo Kubitschek. Especialmente no ano de 1959, como veremos a seguir.
O que foi a COFAP
A COFAP, Comissão Federal de Abastecimentos e Preços, foi criada em 19515, pelo governo Vargas a partir da discussão que acontecia no país a respeito do abuso dos preços e especulação de gêneros alimentícios. Tinha como objetivo principal criar um dispositivo capaz de “intervir no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo do povo, sempre que deles houver carência” (Lei no. 1.522, de 26/12/51).
Entre outras medidas, a COFAP tabelava preços “fixados por portarias de seu presidente em valores determinados, ou por aplicação de uma fórmula denominada CLD (custo, lucro, despesas)” (Romano, 2005, p. 19). Além disso, deveria controlar o abastecimento de produtos de primeira necessidade “na tentativa de modernizar o sistema de abastecimento nacional de alimentos, melhorando a relação entre produção e comercialização agrícola” (Miranda, 2005, p. 49). Possuía também a incumbência de fiscalizar se suas medidas estavam sendo efetivadas ou não.
O fato é que esse órgão não estava sendo eficaz o suficiente. Ele não conseguiu frear o aumento dos preços dos gêneros básicos e nem orquestrar a promoção de uma distribuição de gêneros alimentícios mais efetiva. Segundo George Bernardo Miranda,
a produção crescia cada vez mais e atingia níveis que permitiam suprir as necessidades nutricionais de toda população nacional, além de permitir o crescimento das exportações. Belik, descrevendo sobre os valores dos alimentos, mostra a situação, onde mesmo que sob controle, ‘parte importante de distribuição estivesse sob o controle do poder público, os preços dos alimentos continuavam elevados e a questão da fome já se destacava na realidade brasileira associada à questão da carestia dos alimentos e à inflação’
(Miranda, 2005, p. 53).
Mesmo quando a comissão parecia exercer efetivamente sua função, muitas vezes, ela era criticada. Isso aconteceu, por exemplo, em 1958, quando congelou os preços das escolas particulares. O senador Mem de Sá, em discurso para o Congresso Nacional disse que:
Parece a qualquer observador distraído que a COFAP não desconhece a elevação incessante, monótona, por vezes desvairada dos preços de todas as utilidades. Não se sente ela com coragem, nem possibilidade de congelar, pois diária e pacientemente se vê compelida e lhes registrar a alta. Para os estabelecimentos de ensino médio, porém, não teve dúvidas nem hesitações – congelou, com uma fácil e cômoda pegada, as contribuições dos alunos de todos os estabelecimentos particulares
(Sá, 1958, seção 11).
Até mesmo setores de esquerda criticavam a atuação da comissão. Luiz Carlos Prestes, em janeiro de 59, escreve que “para que qualquer medida de controle de preços possa ter relativa eficiência, é necessário dar caráter democrático à COFAP, incluindo no seu Conselho representantes autorizados dos diferentes setores das massas populares” (Prestes, 1959).
Sua ineficiência era admitida pelo próprio presidente Juscelino Kubitschek. Em 12 de março de 1959, ele lança uma campanha contra a elevação do custo de vida, em um discurso pela “Voz do Brasil”. Entre outras medidas, determinava-se que:
Os ministros da Agricultura, Fazenda, Trabalho e Viação concluirão, com urgência, um projeto-de-lei que, admitindo a extinção definitiva da COFAP, preveja um método mais eficiente da intervenção estatal para a defesa da economia popular. Na regulamentação desse preceito constitucional, ter-se-á em vista que no combate aos especuladores o amparo à produção representa um fator de maior eficácia do que as simples medidas de repressão
(Presidência da República, 1960).
O Decreto número 53.460 finalmente estipula o dia 30 de janeiro de 1964 para a extinção definitiva da COFAP e seus órgãos auxiliares. Esse foi somente o desfecho de uma situação que se arrastava desde os primeiros anos da década de 50. Mas por que, então, a censura do nome “COFAP”? Alguns acontecimentos específicos do ano de 1959 parecem dar conta dessa explicação.
1959: inflação e diminuição de salários reais.
O aumento da inflação e dos preços era um problema que começou a se agravar no país desde os primeiros anos da década de 50. “Em 1956, a taxa de inflação era de 19,2%, ao passo que em 1960 era de 30,9%” (Benevides, 1976, p. 235).
Kubitschek adotou, durante seu governo, uma tática bastante interessante para lidar com a insatisfação popular que provinha, de um lado, pelo constante aumento no custo de vida e, de outro, como resultado das impopulares medidas para frear a inflação. Ele atenuava os danos aos trabalhadores com a inflação através de reajustes salariais.
Num Estado capitalista como o brasileiro, que não pertencia especificamente a nenhum dos setores dominantes da burguesia, a chefia do governo teria que jogar com o movimento operário, fazendo concessões, para ter maior apoio da massa frente a seus adversários da classe dominante. Juscelino, sem se confundir com os getulistas, principais mentores desse tipo de conduta, não deixou de oferecer uma série de concessões concretas ao movimento operário, onde se concentrava a parcela de esquerda que tinha efetivamente alguma importância. Como vimos, em seu governo, as perdas dos trabalhadores com a inflação, se não eram compensadas, ao menos eram bem atenuadas com os reajustes salariais concedidos
(Maranhão, 1981, p. 84).
Este tipo de ação era importante não somente para angariar o apoio das massas, mas, também, para conseguir apoio político de um dos principais atores da época: o PTB, apoio este necessário para a aprovação do Plano de Metas e da construção de Brasília. Segundo Maria Benevides, “um dos aspectos mais importantes para uma possível aproximação entre os interesses do PTB (partido teoricamente representante dos trabalhadores) e projetos de desenvolvimento refere-se à conotação imediata entre um partido trabalhista e política salarial” (Benevides, 1976, p. 216).
Essa política, entretanto, começou com o tempo a pesar para o Estado e o próprio Juscelino, em alguns discursos, chegou a culpá-la pelo aumento do custo de vida. Em uma mensagem ao Congresso Nacional em 1957, ele diz que:
O mais grave dos problemas imediatos era a inflação. Poderia dizer que o Brasil nunca deixou de sofrê-la, ora em estado agudo, ora em estado crônico, no curso de sua história. (...) No começo do ano, os fatores inflacionários mais importantes era o déficit público, as exigências de maiores salários e a pressão geral sobre o crédito. (...) Não se põe em dúvida a legitimidade dos motivos que levam a reivindicações de melhores níveis de salários. Convém, apenas, lembrar que a concessão de aumentos, sobretudo em proporções superiores às possibilidades de redistribuição de renda do País, constitui poderoso fator de encarecimento da vida, tanto pelo acréscimo nos custos de produção, como pela expansão geral da procura de bens e serviços em condições de oferta pouco elástica. Sabe-se quão ilusórios se mostram, a breve termo, os aumentos gerais de salários, mas nem sempre pode o Governo deixar de determiná-los pois não têm efeito imediato muitas das medidas que se vêm tomando para conter a alta dos preços, e assim minorar as dificuldades daqueles que labutam modestamente pela prosperidade do País
(Oliveira, 1957, p. 127).
Se em 1957 essa dificuldade se expressava por palavras, em 1959 elas viram ação efetiva. Os índices de salário mínimo real em São Paulo e Rio de Janeiro foram os mais elevados em 25 anos exatamente no período do Governo Kubitschek, mas, em 1959, eles começaram a entrar em decadência. Vale ressaltar, ainda, que, logo no primeiro semestre de 1958, os aumentos dos preços começam a se acelerar.
A situação é agravada pelas impopulares medidas do Plano de Estabilização Monetária liderada por Roberto Campos6. Sobre essa época, Kubitschek fala em suas memórias:
O Plano de Estabilização, elaborado sob a supervisão de Roberto Campos, teria de refletir – como, de fato, refletiu – mais uma preocupação técnica do que política. Era seco, rigidamente racional. No segundo semestre de 1958, a reação popular às medidas drásticas, tomadas por autoridades fazendárias, não acusara uma amplitude que pudesse causar apreensão. Já não aconteceu o mesmo em 1959, quando o Plano entrara em execução. Os protestos das donas-de-casa adquiriram enorme ressonância. Os bancos se queixavam. Os empresários encaminhavam representações. E, pouco depois, surgiram os ‘quebra-quebras’. Em fevereiro de 1959, os estudantes do Rio, numa manifestação de repulsa à atitude de Roberto Campos que, no cumprimento de um dispositivo do Acordo de Roboré, autorizara duas firmas norte americanas a explorar o petróleo boliviano, colocaram faixas na sede do BNDE, exigindo sua demissão
(Oliveira, 1978, p. 250).
Desta forma, nota-se que em 1959 havia um ambiente bastante hostil em relação às ações governamentais. Em meio a uma época conturbada – em que “se fazia ouvir, em todo o país, um clamor em favor de um generalizado aumento de salários” (Oliveira, 1978, p. 249); em que a inflação e o aumento do custo de vida deixaram de ser atenuadas por medidas paternalistas; e que a própria retenção da inflação exigiam medidas bastante impopulares – a COFAP, mesmo ineficiente, tinha um valor simbólico importante por ser uma medida de caráter popular.
Mesmo que Kubitschek tivesse pedido a suspensão da COFAP em março, como mostramos anteriormente, em julho (data da peça), devido às medidas restritivas, era necessário que ela não fosse mais um órgão menosprezado – como o faz a fala de Luciano. Simbolicamente, ela ainda exercia a função de ser uma comissão que tornaria o custo de vida mais baixo para o povo. E era isso que importava.
A emergência das massas populares na esfera pública relevante:
A ação da censura nessa peça, como foi possível observar, possui uma relação intrínseca com a ascensão das massas à esfera pública relevante. A Revolução de 1930 inaugura uma nova fase da política brasileira, na qual nenhum grupo, isoladamente, é capaz de legitimar o poder (tal como o faziam as oligarquias no período anterior). Se os setores médios da sociedade associados à oligarquia dissidente conseguiram levar o sistema oligárquico a uma crise, eles não foram capazes, entretanto, de legitimar o poder por si só.
É nesse contexto que ocorre a emergência das massas populares à esfera pública relevante. “Desse modo, o poder conquistado pelos revolucionários nos quadros de um compromisso só encontraria condições de persistência na medida em que se tornasse receptivo às aspirações populares (...) Aparece o ‘fantasma do povo’ na história política brasileira” (Weffort, 2003, p. 54-55).
Desde o final dos anos 20, as massas já apareciam na imprensa como um ator que deveria ser levado a sério. É o caso, por exemplo, dos editoriais do Diário Nacional que criticavam o fato de que “no Brasil os direitos do operariado ficam sempre no segundo plano, (...) não tem sequer o direito de abrir a boca para protestar” ou diziam que “o poder público atira cada vez mais o proletariado para as esquerdas”. O jornal O Estado de São Paulo também percebe isso no mesmo período e “parece dar-se conta das modificações existentes, que trazem um novo parceiro para a luta política: uma ‘massa’, ou ‘as massas’, ou as ‘forças populares’, não definidas pelo jornal” (Borges, 1979, p. 126).
Mas ao mesmo tempo em que essa massa passa a integrar a pauta da esfera pública relevante, ela começa também a ser vista como um elemento que necessita de uma tutela. Como explicita Borges, a respeito de O ESP, “ora, o projeto elitista do jornal precisa de alguém que imprima uma direção a essa ‘massa’” (Borges, 1979, p. 126). Curiosamente, já em 1929, o jornal apontava Vargas como um provável tutor dos desesperançados. Essa preocupação se intensifica a partir de 1945, quando as massas populares, efetivamente, conquistam os mecanismos de acesso e permanência do poder.
E é justamente nessa síntese de imagens que o populismo pode ser melhor definido. Pois se trata de um tipo de política que, por um lado, faz com que as massas funcionem como uma fonte de legitimidade para o Estado, mas, por outro, essa legitimidade só é possível de ser concebida quando vista dentro de um sistema de alianças policlassistas, que tira, de certa forma, a autonomia dessa mesma classe popular.
A imagem, senão o conceito, mais adequada para entendermos as relações entre as massas urbanas e alguns grupos representados no Estado é de uma aliança (tácita) entre os setores de diferentes classes sociais na qual a hegemonia encontra-se sempre ao lado dos interesses vinculados às classes dominantes, mas torna-se impossível de realizar-se sem o atendimento de algumas aspirações básicas das classes populares, entre as quais a reivindicação de emprego, de maiores possibilidades de consumo e de direito de participação nos assuntos do Estado. Aspirações mínimas, por certo, mas decisivas na política de massas num país como o Brasil
(Weffort, 2003, p. 85).
Essa aliança tácita foi muitas vezes garantida através da manipulação da imagem do governo junto aos difusores culturais de massa (tal como é o caso do teatro e da peça analisada). E um dos responsáveis por esse fato é, justamente, uma espécie de massificação bastante particular a países da América Latina.
Segundo Weffort, diferentemente do processo de massificação europeu, a massificação brasileira foi prematura: não caracterizada pela quebra de uma consciência de classe (que, de qualquer forma, sequer se encontrava desenvolvida), mas por uma incorporação aos setores urbanos de amplos contingentes populacionais vindos do interior.
Outra particularidade desse processo é o de que, ao contrário de reduzir a consciência política, a massificação brasileira acabou por aumentá-la, já que a única possibilidade de participação política das massas rurais estava quando elas se incorporavam ao ambiente urbano, longe dos potentados rurais e do coronelismo.
Os produtos de massa urbanos, portanto, eram de extrema importância na caracterização simbólica do governo. Controlando a censura, o governo era capaz de manipular sua imagem. Trata-se de uma síntese bastante significativa da política do período. Pois, ao mesmo tempo em que as massas encontravam meios próprios de representação de suas insatisfações e desejos (como é bem representado, não só pelo poder de voto, mas por expressões culturais como a peça que analisamos), essa expressão só podia ser veiculada de acordo com um sistema de compromisso com o governo (já que a censura regulava como essa imagem poderia ser veiculada).
Como já explicitamos, a peça fazia parte de um circuito de teatro bastante específico, o teatro amador de segunda fase, que não era, portanto, destinado à elite intelectual e econômica. Outra prova disso está no requerimento de censura que acompanha a peça. Ali, o requerente explicita que não haveria cobrança de ingresso. A peça, portanto, seria assistida por essa “massa urbana” cuja legitimidade o governo aspirava.
Se desde 1945 o teatro brasileiro já havia entrado em sua fase Modernista – com apresentações de consagradas peças internacionais e o início de um desenvolvimento de uma arte nacional engajada e a crescente profissionalização dramatúrgica – ainda pode ser notada a existência de um circuito popular onde o baixo preço dos ingressos funcionava como chamariz para uma classe social mais baixa.
Mais do que isso, a presença de um grande número de peças populares com presença de corte de palavras indica a preocupação governamental em regulamentar e “tutelar” essas apresentações. Estima-se que mais de 1.300 peças das peças presentes no arquivo sofreram corte de palavras. Tratava-se, afinal, de preservar uma relação entre as massas populares e o Estado baseada em relações simbólicas de confiança.
A COFAP e a luta pela violência simbólica legítima: considerações finais
Isso posto, podemos interpretar de forma mais segura a ação da censura em O Retrato de Luciano. “O capital político”, segundo Pierre Bourdieu, “é uma forma de capital simbólico” (Bourdieu, 1989, p. 187). Isso quer dizer que o poder político é fundado, basicamente, na “crença” e “reconhecimento”, ou seja, um governante só é governante porque um determinado grupo de pessoas assim o crê como tal.
O poder simbólico é um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com que ele o credite, um fides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo nele a sua confiança. É um poder que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe
(Bourdieu, 1989, p. 188).
A partir dessa base de confiança, sem a qual o exercício do poder seria impossível, a autoridade do homem político está baseada na sua capacidade de mobilização daqueles a quem governa. O governo Kubitschek é historicamente conhecido por saber cooptar de forma eficiente o apoio das massas e a política salarial dos primeiros anos de governo confirma esse fato. Em 1959, no entanto, com essa mesma política de salários em crise, a própria capacidade de mobilização do governo Kubitschek estava prejudicada.
Além disso, é necessário considerar que “a delegação do capital político pressupõe a objetivação desta espécie de capital em instituições permanentes, a sua materialização em ‘máquinas’ políticas (...) e a sua reprodução contínua por mecanismos e estratégias” (Bourdieu, 1989, p. 194). Com a política salarial em crise, era justamente a COFAP que assumiria este papel de Instituição que forneceria o apoio básico para a mobilização das massas, justamente por causa de seu caráter popular. Em seu nome não estava em jogo somente regras técnicas visando um determinado resultado, mas, principalmente, todo um sistema de confiança em um governo.
Advém daí seu importante caráter simbólico. Devemos levar em consideração que:
É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço de sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo, assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domestificação dos dominados’
(Bourdieu, 1989, p. 11)
A censura da palavra COFAP não foi, portanto, nada mais do que o desfecho de uma luta entre duas esferas sociais pelo “monopólio da violência simbólica legítima” (Bourdieu, 1989, p. 12). É preciso levar em consideração, contudo, que o resultado dessa luta só obtém um resultado efetivo quando a própria luta em si é apagada, ou seja, quando a imposição da ordem é “estabelecida como natural (ortodoxia) por meio da imposição mascarada (logo, ignorada como tal)” (Bourdieu, 1989, p. 14). E essa função é perfeitamente exercida pelos mecanismos de censura.
Longe de ser um sistema de ação adotado somente em relação à peça O Retrato de Luciano, podemos citar uma série de outros processos em que o censor adotou procedimento semelhante. A manutenção da confiança simbólica em instituições de poder pode ser atribuída entre as funções da censura teatral também se levarmos em consideração outros cortes efetuados no período estudado.
Partindo do corpus analisado pelo eixo temático “O Poder e a Fala na Cena Paulista”, notamos que aproximadamente 20% dos cortes políticos podem ser atribuídos a falas que fazem referências a críticas gerais sobre o governo e sobre as autoridades políticas, problemas de corrupção e de justiça, crítica às más condições sociais e referências a empresas públicas.
A manutenção da autoridade policial e militar é outro tema caro. Das peças catalogadas até o momento no arquivo, nota-se que 21 processos possuem censura a termos que tratem policiais de forma desrespeitosa. Agindo da mesma forma, são alvo de corte em 10 processos, a palavra “militar”; em 3 processos, a p
1Graduanda em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Desenvolve o trabalho junto ao projeto temático "A Cena Paulista: um estudo da produção cultural de São Paulo a partir do Arquivo Miroel Silveira" no eixo temático "O Poder e a Fala na Cena Paulista", sob orientação da Profa. Dra. Mayra Rodrigues Gomes. Email: elizacasadei@yahoo.com.br
2Utilizamos ao termo “formas populares de arte” porque as peças teatrais citadas no presente artigo, assim como a maior parte do acervo do Arquivo Miroel Silveira, são apresentações populares, oriundas do teatro de revista, de grupos amadores ou de circos teatros. São peças que, de certa forma, atendiam mais uma camada baixa e/ou média da população, do que propriamente uma elite, onde o baixo custo dos ingressos funcionava como chamariz.
3O Tribunal de Segurança Nacional foi criado em 1936 com o objetivo de punir os envolvidos com a Intentona Comunista. Ele foi decretado órgão permanente com a instalação do Estado Novo e, segundo o CPDOC, “a função do tribunal era processar e julgar, em primeira instância, pessoas acusadas de promover atividades contra a segurança externa do país e contra as instituições militares, políticas e sociais. Entre setembro de 1936 e dezembro de 1937, 1420 pessoas foram por ele sentenciadas (...) O TSN foi extinto após a queda do Estado Novo, em outubro de 1945” (Oliveira, CPDOC, 1997).
4Apesar de a palavra na peça estar indicada como “COFAPE”, não achamos nenhum órgão ou empresa que apresentasse a grafia deste modo. Levando em consideração que os erros de grafia são comuns nas peças existentes no Arquivo Miroel Silveira, tomamos como correta a forma “COFAP”.
5Criada pela lei número 1522, de 26 de dezembro de 1951.
6Entre as providências do Plano de Estabilização Monetária estavam inclusas, segundo Benevides: imitação do crédito e controle operacional sobre bancos particulares, aumento nos impostos de renda e de consumo, revisão do salário mínimo e restrição aos aumentos salariais (Benevides 1976, p.221). O plano não chega a ser concluído e é abandonado em agosto de 59 quando Kubitschek “substituiu Lucas Lopes por Paes de Almeida no Ministério da Fazenda e Roberto Campos por Lúcio Meira no BNDE” (Benevides, 1976, p.223).
Referências
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