Resumo
O artigo é parte de um projeto de pesquisa maior desenvolvido em conjunto por dois grupos de pesquisadores da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) e UAB (Universidad Autónoma de Barcelona). Procurando caracterizar um universo muito específico de recepção midiática, apresenta e discute, fundamentalmente, vários aspectos do perfil sociocultural dos 140 migrantes entrevistados no contexto da investigação.
Abstract
The article is part of a bigger research project developed for two groups of researchers of Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) and UAB (Universidad Autónoma de Barcelona). Trying to characterize a very specific universe of media reception, it presents and discusses, basically, some aspects of the socio-cultural profile of the 140 inmigrants interviewed in the context of the inquiry.
Introdução
O texto aqui apresentado foi escrito no âmbito do projeto de pesquisa “Mídia e interculturalidade: estudo das estratégias de midiatização das migrações contemporâneas nos contextos brasileiro e espanhol e suas repercussões na construção midiática da União Européia e do Mercosul”. Desenvolvido entre março de 2004 e dezembro de 2007, o estudo foi coordenado pelos professores Denise Cogo (Unisinos) e Nicolás Lorite (Universidad Autónoma de Barcelona), contando ainda com a participação de diversos professores, alunos pós-graduandos e investigadores das duas instituições. O trabalho de campo dedicou-se à realização de 140 entrevistas com migrantes latino-americanos e europeus hoje residentes nas cidades de Barcelona (Espanha) e na região da grande Porto Alegre (Brasil). O foco temático central dizia respeito à percepção, por parte dos migrantes, de inter-relações entre processos migratórios e produções (e/ou representações) midiáticas. O texto que segue traz à público parte dos dados e das reflexões então produzidas.
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Ao longo de nosso processo de investigação, esperávamos que os dados empíricos pudessem nos proporcionar a maior diversidade possível de “perfis” migratórios e de percepções sobre a experiência intercultural em seu impacto sobre a identidade dos entrevistados em diversos níveis. Assim, coletamos um conjunto muito valioso de “histórias pessoais” e situações interculturais narradas. Basicamente, o objetivo do presente artigo é apresentar parte deste material, procurando então esclarecer ou encontrar um perfil ou os principais perfis dos migrantes com os quais trabalhamos. A intenção é a de que possamos dar aqui um breve retrato, mostrar o modo como os atores sociais que entrevistamos vivem o impacto subjetivo da experiência migratória.
Entretanto, trata-se de tentar apreender também o modo como submetem este impacto ou esta vivência subjetiva a certas grades sociais. Dentre elas, encontram-se desde as representações e os imaginários sociais construídos, no Brasil e na Espanha, sobre o migrante, sobre os diversos tipos e os diversos perfis de migrantes – a dimensão do que poderíamos chamar aqui de uma “subjetividade coletiva” – até enquadramentos sociológicos mais objetivos, tal como a inserção nos mercados formais e na ordem legal.
Em outras palavras, pretendemos ver como o migrante, lidando com demandas objetivas, tais como os vistos, as ofertas de emprego, a escolaridade, as condições de residência, e subjetivas, tais como a solidão e a saudade, anuncia-se e define-se enquanto tal. Quais destas dimensões (ou quais dos múltiplos temas que dentro delas podem se colocar) pesa (ou pesam) mais no momento em que se auto-definem e refletem sobre sua condição?
Nossa expectativa era a de que a experiência subjetiva pudesse ser acompanhada justamente nos movimentos e no processo (vivencial, tentativo...) que a tornam experiência social – a experiência subjetiva no seu processo de conversão em experiência social. Diante de tais intenções e tais desafios teóricos, autores como Néstor Garcia Canclini e Stuart Hall, ao falarem sobre identidades culturais, como Erving Goffmann, ao falar sobre o self e as representações do eu na vida cotidiana, como Anthony Giddens, ao trabalhar as noções de estruturação e de reflexividade social, foram importantes e forneceram boas balizas conceituais.
Os referenciais teóricos citados, bem como os objetivos gerais do artigo, indicam que, neste momento, nossas maiores preocupações não são midiáticas num sentido muito estrito. Antes, temos intenções de obtenção e desenho de um quadro sociocultural – um quadro sociológico no qual se dão passagens pessoais e ocorrências subjetivas. Logicamente, o midiático continua presente em nosso horizonte de trabalho. Entretanto, irá aparecer aqui como incidência, como presença indireta e um tanto difusa nos relatos. Como sabemos, a apreensão de processos midiáticos, principalmente de processos midiáticos rebatidos e misturados nas experiências societais – assim qualificados, processos midiáticos muito mais complexos –, não se daria num só golpe, nem de uma só vez. Fazer um quadro sociocultural inicial – onde o midiático estrito é um pouco coadjuvante – pareceu-nos então algo não só plenamente justificado como também muito necessário e prudente.
Embora os referenciais teórico-conceituais se façam (e estejam, de fato) presentes, não podemos esquecer que o principal conceito sobre “migração” (e outros conceitos que decorrem dele, como “migrante”, “fluxo migratório”, etc) será aquele dado pelas próprias falas reunidas. Mais do que uma definição abstrata e generalizante sobre o fenômeno, importa perseguir aqui um processo social muito concreto e espontâneo de conceituação (ou de “auto-definição”). Sendo assim, teríamos algo como um grounded concept (um conceito fundado; um “conceito vivido”, digamos). A pergunta, enfim, é a seguinte: como os atores sociais, a partir daquilo que vivem, conceituam e definem a própria experiência migratória?
Identidade, pertencimento e migração
Um de nossos primeiros desafios foi justamente o de pensar os dados empíricos para além da mera afirmação dos clichês identitários. Os estereótipos culturais – talvez não pudesse ser mesmo diferente – estavam permanentemente presentes. Entretanto, aceitando tal fato, como ler por entre as concepções de senso comum de que o Brasil é um país acolhedor, de que os brasileiros são alegres, de que os espanhóis sabem viver a vida, de que os europeus do norte são frios, por exemplo? O que é dito junto com tais “visões de mundo” ou a despeito delas? Em algum momento elas são negadas, sem que o próprio entrevistado perceba? Trata-se aqui de tentar ver quais estereótipos aparecem, como aparecem e, se ocorrer, como são contraditados.
Neste sentido, o material empírico obtido possibilitou a organização de certas tipologias para pensarmos as questões identitárias e todos os relatos apresentados sobre o sentimento de pertencimento. Num dos extremos, teríamos um perfil mais essencialista – aqui, talvez se recoloque, muito afirmativamente, a questão dos estereótipos culturais (referida acima) –; noutro extremo, colocam-se aquelas falas – e elas não são poucas – que afirmam uma identidade plural, aberta, fragmentada, multicultural, ou como quisermos chamá-la. Alguns entrevistados dizem: “Me sinto assim..., mas, por outro lado, me sinto assim também...”; “sou de tal lugar, mas me sinto também muito daqui”; “sou multicultural”, etc etc. Tratar-se-ia então de tentar apreender, via depoimentos, a composição e as nuances dessa graduação. Assim, valeria evidenciar tanto os dois pólos (essencialistas x multiculturais) quanto os lugares intermediários, com suas combinações e seus relativismos pontuais. Não se tratou, claro, de nominar, catalogar ou enquadrar sujeitos específicos, mas de, a partir de suas falas concretas, apreender “tipos abstratos ideais”. Certamente, em cada tipo ou em cada posição desse gradiente será possível observar aspectos definidores, aspectos deixados para trás, trocas e substituições feitas, acréscimos, etc. Como os elementos simbólicos, culturais, materiais e/ou econômicos mobilizados para definir o pertencimento vão sendo apresentados, vão permanecendo ou sendo trocados (e por quais outros)? Parece importante então que possamos ver as diferentes formas pelas quais se expressa o sistema simbólico da identidade. Até porque, eventualmente, tentar entender estas variações e estas diferenças pode revelar certas incidências midiáticas. Afinal, nossa hipótese era de que, na tensão entre permanente reconstrução x permanente afirmação identitária, atravessam-se também materiais e fluxos propriamente midiáticos.
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Quando se analisa a totalidade das respostas dos migrantes à questão “você se identifica com o seu país de origem?”, é possível perceber a existência de tipos de identificação diferenciados, considerando a natureza unitária ou plural da afirmação identitária, nos dois contextos.
Há um grupo significativo de migrantes que afirmam uma identificação relacionada a uma nação (42% do total), que pode ser a de nascimento ou de destino atual; há também um grupo significativo caracterizado por uma identificação composta (46% dos migrantes), agregando à nacionalidade relativa ao país de origem outras formas de identificação, que podem ser referentes ao país ou à região de destino atual (Catalunha, Barcelona ou Porto Alegre); há ainda um grupo menor de migrantes que afirmam uma identificação multicultural (12% do total), configurada por referentes múltiplos, diversos e plurais.
Os dados apontam para a questão de que a experiência da migração, entre os investigados, em geral, não significa apagamento da identificação com a nação de origem (84% dos migrantes afirmam a nacionalidade de origem, agregando-a, eventualmente, a outras formas de identificação, sem se contabilizar aqui aqueles que afirmam uma identificação multicultural). Mas também se pode ver que, num número significativo de casos, esta identificação aparece relativizada na reivindicação de identificações compostas (que somam 46%), relativas aos contextos vivenciados pelos migrantes em suas trajetórias de vida, ou ainda, disseminada pela afirmação de uma identidade plural, aberta ou multicultural.
A identificação com a nação de origem é explicada fundamentalmente em base cultural, em ambos os contextos. Ou seja: são os referentes de natureza cultural que assumem predominância na definição da pertença nacional. Isto denota a gestação de uma definição identitária nacional menos ideológica (construto político), menos mítica (construto histórico) e mais propriamente alicerçada em elementos de ordem cultural ligados a práticas cotidianas.
Estas qualificações são melhor explicitadas considerando os três tipos básicos de identificação, na seqüência.
Identificação relativa a uma nação
A afirmação de identificação relativa a uma nação é geralmente relacionada ao país de origem. É maioria entre os migrantes que vivem em Barcelona (51% do total), tendo menor expressão no contexto de Porto Alegre (31%). Está presente entre migrantes provenientes da América Latina e da Europa, entre migrantes de diferentes nacionalidades, idades e sexos. Os dados sinalizam que este tipo de identificação ocorre mais entre os migrantes com tempo não muito longo de permanência no contexto de migração atual4.
São os referentes de natureza cultural que assumem predominância na definição da pertença nacional entre os migrantes agrupados neste modo de identificação, expressados em falas que fazem referências gerais às “raízes”, aos “costumes”, à “cultura”. Em alguns casos, vale dizer, tais relatos fazem especificações maiores, como veremos. O referente de identificação mais citado é a culinária, que aparece nas falas dos migrantes provenientes da Europa e América Latina, vivendo nos dois contextos, embora tenha maior presença nas falas daqueles vindos da América Latina, residentes em Barcelona.
Os hábitos gastronômicos são tomados, em muitas das falas que ouvimos, tanto num sentido muito estrito (comidas e bebidas típicas) quanto como ritualidade cultural mais ampla, lembradas e destacadas também pelos preparativos e por todos os demais sentidos que cercam as reuniões comensais. Há migrantes que detalham pratos e bebidas considerados típicos dos países e lugares de origem, ritualidades da alimentação. Alguns mencionam a conservação de suas práticas no núcleo familiar e/ou em ocasiões de encontros e celebrações, muitas vezes realizadas com outros migrantes conterrâneos. Outros apontam a culinária típica como elemento ativador (e também como estratégia de compensação, como fator atenuante) da saudade. Alguns relatam as táticas utilizadas para conseguir os produtos alimentares da terra natal, como a procura por lugares específicos onde determinados produtos são comercializados, assim como o costume de trazê-los quando o país de origem é visitado (seja pelos próprios migrantes, seja por amigos ou conhecidos). Em país estrangeiro, é possível perceber que o resgate da culinária aciona e mantém algum tipo de vínculo simbólico-memorialístico com a terra natal. As falas a seguir são muito ilustrativas.
Yo, las comidas típicas lo hago aún aquí. La comida de aquí... no es que no me apetezca. (...) Si, en Mercado Latino, que es un local aquí que traen cosas nuestras... Traen nuestras yerba mate, tomamos tereré
(Casimiro, Barcelona, 26 anos, nascido no Paraguai).
El gusto sigue siendo muy argentino, sigo, a pesar de haber pasado 18 años, recordando el gusto del melocotón, de las fresas
(Hilario, Barcelona, 55 anos, nascido na Argentina).
Pues ahora estoy veniendo de un almuerzo y hemos comido comida peruana y se toman cosas peruanas
(Sebastián, Barcelona, 28 anos, nascido no Peru).
Los rasgos que la gente me dice que me hacen italiana son la gestualidad, la comida
(Carla, Barcelona, 32 anos, nascida na Itália).
Curiosamente, a própria culinária se presta também, ou é submetida, a processos de fusão ou combinação de pratos típicos do país de origem e pratos típicos do país para o qual se migra. A tensão entre apropriação e manutenção de hábitos culturais manifesta-se também à mesa, seja na experiência presente da migração, seja no recontar histórico dos hábitos culturais, permanentemente lembrados quando se trata de afirmar traços identitários. Os depoimentos a seguir ilustram a presença deste referente:
Trato de conservar ciertas raíces, como es por ejemplo en el área de la comida. (...) Yo combino un plato de aquí con mis platos. Porque unas amigas me dicen, yo también era así cuando yo llegué, yo cocinaba las cosas de allá pero ya después no. Yo no, yo hago, preparo cosas, guardo en el congelador y ya después saco...
(Jenni, Barcelona, 42 anos, nascida no Equador).
Assim, sendo um país europeu, nós temos uma culinária que foi bastante premiada com coisas que vieram de fora, por exemplo, nós temos uma cozinha que utiliza muito mais especiarias do que qualquer outro país da Europa, que utiliza ervas e outros tipos de coisas que não são da Europa, como, por exemplo, o coentro. Porque o coentro é uma erva da Ásia, do sudoeste asiático. E é daquelas coisas que, por exemplo, no sul de Portugal há coentro em tudo quanto é lado
(Julio, Barcelona, 40 anos, nascido em Portugal).
A música e a dança são outros referentes importantes de identificação, que aparecem particularmente apontados pelos migrantes provenientes da América Latina, de distintas nacionalidades. Indica-se assim a importância deste referente cultural no contexto latino-americano. Dentre os migrantes provenientes do contexto europeu, apenas uma migrante polonesa cita este aspecto. Já entre os provenientes da América Latina, a música é mencionada em oito ocasiões, e a dança em duas entrevistas. Na fala de alguns destes migrantes aparecem detalhes, como o hábito de trazer músicas do país, o sentido de rememoração de lugares e práticas queridos do país de origem, os modos de escuta, como a associação com rituais alimentares no âmbito doméstico, o uso do computador para escutar e a descoberta de lugares onde se pode ouvir música típica dos países de origem no contexto de migração atual. Vale destacar também o caso de um migrante que trabalha com a música brasileira em Barcelona. Os depoimentos seguintes ilustram a presença destes referentes de identificação com a nação de origem.
Me he traído también mucha música. Y bueno, es como que uno escucha y no sólo porque te hace acordar al lugar, sino también a momentos que estabas con personas que querías, o donde estabas haciendo cosas que te gustaban, y bueno es como que escuchas esa música y te remonta a ese tiempo
(Jina, Barcelona, 25 anos, nascida na Argentina).
La música peruana me encanta! Yo iba a las (...) peñas criollas, donde hay muchos cantantes de música criolla, que es música de la costa peruana e donde todo el mundo se sabe las canciones, entonces es un éxtasis, se toma cerveza con los amigos, una persona ahí adelante cantando. (...) Y bueno, aquí igual escucho la música peruana, en el ordenador. (...) El desayuno del domingo, y se escucha... se come a la una de la tarde escuchando música peruana
(Manuel, Barcelona, 28 anos, nascido no Peru).
A língua ou particularidades lingüísticas são elementos presentes nas falas de alguns dos entrevistados para marcar a pertença nacional (seis migrantes, quatro de Barcelona e dois de Porto Alegre). Há referências não apenas a um idioma nacional, mas a particularidades lingüísticas regionais ou étnicas (o catalão, o guarani e um dialeto italiano), apontando clivagens internas aos países de origem em termos de linguagens que continuam vigentes como elementos de identificação. É o que ilustram os depoimentos:
O guarani eu continuo falando. E o espanhol, né? Não tem como. (...) Sou alfabetizada em guarani. Falo, leio e escrevo em guarani
(Lina, Porto Alegre, 30 anos, nascida no Paraguai).
Una coisa, não seria tanto en Espanha, seria en Cataluña. (...) En Cataluña, la língua, muito... En espanhol no siento tanto. (...) Catalão si, para mi é algo que identifica e que é muito de minha raiz. Porque eu nasci e aprendi catalão desde que eu era pequena. É a minha língua materna, sí
(Juana, Porto Alegre, 26 anos, nascida na Espanha).
Outro elemento que ancora sentimentos de identificação com as nações de origem é referente às relações afetivas, familiares, de amizade e de solidariedade. Sob este aspecto aparecem referências àqueles que o migrante identifica como “minha gente”: “Eu gosto mais da minha terra, da minha gente. Eu não gosto muito daqui”, diz uma das entrevistadas (Nuria, Porto Alegre, 35 anos, nascida no Uruguai). Refere-se também aos amigos feitos no país de nascimento: “Y esto me hace brasileña, mi infancia, mi educación, mis amigos” (Norma, Barcelona, 29 anos, nascida no Brasil); à família, que permanece no país de origem: “Sí, yo soy polaca. Soy polaca cien por ciento y extraño mucho mi país, extraño mucho mi família” (Suzana, Barcelona, 30 anos, nascida na Polônia); à importância dos laços familiares:
“Hombre, la familia, ese sentimiento de unión que hay en nuestra familia. Yo pienso que no solamente en Perú, sino en latinoamerica. Es totalmente distinto aquí. O sea... principalmente, te diría que lo familiar, o sea lo emocional y familiar”
(Adriano, Barcelona, 32 anos, nascido no Peru).
No contexto do país em que estão vivendo, os entrevistados referem-se também a certos modos de reconstrução de relacionamentos com migrantes conterrâneos, em grupos ou associações, formais ou informais, que alimentam os sentimentos de pertença.
Os costumes nossos, continuamos cultivando siempre. Tanto seja no núcleo familiar como procurando siempre estar em contato con otros uruguaios, né? (...) Tanto que seguido entramos em contato com a Casa de Amizade Brasileiro-Uruguaio, que era una organización que funcionava aqui em Porto Alegre y através dela foi que então entramos em contato con la colônia uruguaia mesmo, não é?
(Margarita, Porto Alegre, 31 anos, nascida no Uruguai).
Reunidos aquí, porque hay muchos paraguayos aquí, entonces uno empieza a hablar, comenta como es allá... y ... no perdí mucho vamos a decir pero ... cómo se dice... saudades por decir (no sé como se dice en español) mas, pero.. uno siente falta de su país, de sus padres y demás cosas
(Fina, Porto Alegre, 36 anos, nascida no Paraguai).
Estes referentes de identificação estão mais presentes entre os migrantes provenientes da América Latina, o que pode indicar a importância que assumem as relações afetivas nas culturas latino-americanas. Os meios de comunicação desempenham um papel importante na manutenção e reconstrução destes laços, como relata Manuel (Barcelona, 28 anos, nascido no Peru), que criou um site com o objetivo de “conocer a los otros peruanos, ver a las otras personas cómo actúan” 5.
Atributos, qualificações e estereótipos relativos ao modo de ser também são apontados como elementos que caracterizam a pertença nacional nos depoimentos de alguns migrantes. Seguem alguns exemplos deste tipo de referenciação. Os migrantes brasileiros que vivem em Barcelona destacam a alegria, a ingenuidade, a honestidade, a pluralidade, a capacidade de adaptação como características do brasileiro, assim como a orientação para o presente, ao invés do futuro, tida como característica européia, como se pode ver nos seguintes depoimentos:
Me siento totalmente identificada con Brasil (...) y yo creo que esto es muy brasileño, la ingenuidad, la honestidad, de decir lo que piensas y hacer lo que crees, y también lo de no pensar tanto en el futuro (...). Porqué en Brasil, como tú no puedes planear nada, vives muy bien el presente, que es lo que importa
(Norma, Barcelona, 29 anos, nascida no Brasil).
Acho que a pluralidade brasileira é uma coisa que eu carrego um pouco comigo assim e a espontaneidade também. (...) O brasileiro se adapta muito fácil à situação diferente, é muito versátil (...) e a alegria brasileira vem um pouco disso, dessa versatilidade. Sabe, eles até confundem e acham que a gente é muito alegre e tal, e não é, é que a gente vai se adaptando
(Damián, Barcelona, 32 anos, nascido no Brasil).
Os peruanos são qualificados por uma migrante deste país como carinhosos e amáveis: “la gente es muy cariñosa, muy amable, tu preguntas algo y te explican todo, si pueden te llevan, vamos, al sitio” (Suzana, Barcelona, 28 anos, nascida no Peru). Outras atribuições que aparecem no depoimento de Mara (Porto Alegre, 34 anos, nascida no Peru) são o trabalho, o espírito de luta e a coragem peruana: “mais é o espírito de luta, porque o peruano é muito trabalhador. Acho que o peruano em qualquer lugar faz alguma coisa para sair em frente. (...) É muito corajoso”.
Migrantes argentinos referem-se ao modo de processar e raciocinar, a preocupação com o futuro e o caráter nostálgico refletido no tango como elementos que caracterizariam o argentino.
En la forma de procesar, no sé, todo tipo de situaciones, o sea de reflexionar, de pensar, creo que en cada país, dicen no, idiosincrasia, de ser y de ver las cosas. Sigo viendo y siendo argentina, analizando detalladamente todo y dándole la vuelta
(Carmen, Barcelona, 27 anos, nascida na Argentina).
La vida del argentino es como un tango. Sí. Es nostálgico, es muy profundo y lo del tango es que sabemos vivir, pero también sabemos sufrir. Con los políticos que tuvo y todo eso…
(Fabián, Barcelona, 33 anos, nascido na Argentina).
Ainda neste sentido, uma migrante alemã que vive em Barcelona destaca o caráter nórdico, mais reservado, que caracterizaria o alemão, em contraste com o jeito latino: “veo la calidad de esa manera más alemana, más nórdica, de que necesitamos un tiempo para abrirnos, para relacionarnos, pero cuando nos gusta una persona, somos amigos muy fieles...” (Jisela, Barcelona, 35 anos, nascida na Alemanha).
Na visão de uma migrante, são características do polonês o conservadorismo e o romantismo: “Soy polaca cien por ciento y extraño mucho mi país, (...) la gente en Polonia es un poco mas conservantista. (...) El romantismo polaco, soy muy romántica (Suzana, Barcelona, 30 anos, nascida na Polônia). Já uma francesa destaca o gosto pela política como elemento distintivo do francês: “Las ganas de revolución, o el gusto para hablar o discutir o debatir de política, por ejemplo, esto es muy francés y aquí no hay este sentido de política” (Amelí, Barcelona, 27 anos, nascida na França).
Identificações regionais e locais também são afirmadas por migrantes da Itália, da França, do Equador e da Espanha, apontando para a força das clivagens internas às nações que ancoram sentimentos de pertença de base mais regional/local:
Mis padres son del sur, de Calabria, yo vivi durante cinco años... decidi vivir en Napoles asi que, asi que no solo me relaciono con Itália, sino que intento relacionarme con el sur de Itália.
(Carla, Espanha, 32 anos, nascida na Itália).
Naci en una isla y entonces siempre quien nace y vive en una isla no tiene mucho que ver con la cultura del continente, esto es normal y tambien que en Itália está unida desde muy poquito tiempo y entonces desde el punto de vista del idioma y del punto de vista cultural hay muchas diferencias, entre norte y sur
(Emma, Barcelona, 45 anos, nascida na Itália).
Como bretona también... que Bretaña es una parte un poco distinta, es una identidad muy fuerte y más me siento identificada como bretona
(Amelí, Barcelona, 27 anos, nascida na França).
Yo soy del sitio en el que nascí, yo soy de Guayaquil
(Yara, Barcelona, 39 anos, nascida no Equador).
Não seria tanto en Espanha, seria en Cataluña. É porque tu sabes que... Cataluña tens así toda una historia...
(Juana, Porto Alegre, 26 anos, nascida na Espanha).
A cultura relativa ao futebol também aparece como elemento que ancora o sentimento de pertença, no caso de um migrante argentino: “El fútbol... Como se vive ¿no?, sobre todo cómo se vive el fútbol en Argentina. (...) Boca. El gran Boca Juniors” (Hilário, Barcelona, 55 anos, nascido na Argentina).
Há ainda referências ao contexto de migração atual como elemento que produz alteridade, seja pela identificação nas relações informais como diferentes, como migrantes, por situações de discriminação vivenciadas ou ainda pela situação legal e política. O depoimento de uma migrante alemã que vive em Barcelona demonstra este tipo de referência: “Y una vez estaba en la calle (...) y venía un señor mayor al lado mío y yo no he hecho nada... y decía… ¡eh que haces aquí con tu bici... eh Alemania eh fascista!!! ¡Sal del país, vuelve a Alemania!” (Jisela, Barcelona, 35 anos, nascida na Alemanha).
No contexto brasileiro, há a presença de migrantes que passam a afirmar uma identificação com o Brasil, advindos de Portugal, da Argentina e do Uruguai. Uma característica que une estes migrantes é o longo tempo de moradia no Brasil: a média de tempo é de 30 anos, sendo o menor tempo de 16 anos e o maior de 50 anos. Os depoimentos apontam para fatores como o tempo de permanência no Brasil, a acolhida, a ruptura com o cotidiano do país de origem, a presença da família em Porto Alegre e a decisão de viver a nova condição:
Eu me considero brasileiro, sou louco pelo Brasil. Sempre fui bem tratado
(Alan, Porto Alegre, 83 anos, nascido em Portugal).
Eu não tenho conhecimento do dia a dia de lá, eu tenho poucas recordações. Eu saí de lá quando tinha 16 anos, ainda era uma criança, não sabia quanto custava uma semana de alimentação, não tinha essa base de vida lá
(Alberto, Porto Alegre, 41 anos, nascido em Portugal).
No. A diferencia, con la última, com o exílio anterior, porque meus olhos estavam mirando para a Argentina. Quando eu morei os outros siete años, minha mirada estava dirigida ao sul. (...) Aqui existe a receptividade nas pessoas. No na lei. As pessoas, sim. As pessoas... Eu tenho, pelo menos eu tive, sorte. Encontrei pessoas muito receptivas.
(Bárbara, Porto Alegre, 54 anos, nascida na Argentina).
Identificação composta
Um dado significativo em relação a este modo de identificação é que aparece como maioria no contexto brasileiro (60%), mas também tem relativa significação no contexto espanhol, particularmente por conta da identificação com Barcelona. Analisando os subtipos deste grande grupo, vemos que a identificação com a nação de origem e a de destino atual (ou região ou cidade) aparece nos dois contextos investigados, embora seja mais pronunciada no contexto brasileiro, com 49%, contra 25% no contexto espanhol. Os migrantes da América Latina são os que mais expressam este tipo de identificação.
No contexto brasileiro, a maioria das identificações deste grupo se dá com o Brasil. Entre os migrantes provenientes da América Latina, a identificação brasileira também é a mais expressiva, mas há uma parcela significativa (33% do total) que reivindica uma identificação gaúcha6 e não com o país. Um dos fatores que parecem estar relacionados a este tipo de identificação é o longo tempo de permanência no Brasil, em média de 25 anos (o menor tempo neste grupo é de 10 anos).
Ao falarem sobre a identificação com o país de origem e com o Brasil, muitos migrantes expressam ter adotado elementos da cultura brasileira, adquiridos no decorrer do tempo de permanência no Brasil, em geral longo. Alguns também falam da percepção de que sua cultura modificou-se, percepção particularmente aguçada nos momentos em que visitam o país de origem. Tal impressão seria também compartilhada (e então reforçada) por outros migrantes conterrâneos. Outros entrevistados, provenientes de países da América Latina, relatam terem vivido situações difíceis nos países de origem, particularmente relacionados aos períodos de ditadura, tendo encontrado no Brasil maior liberdade e melhores condições de vida, comparadas àquelas vigentes e possíveis no país natal. Um migrante italiano diz ter encontrado mais liberdade e maior democracia no Brasil, em contraste com o que chama de conservadorismo de seu país e da Europa, de modo geral. Também são muito citados como elementos que configuram a identificação brasileira a reconstrução de vínculos afetivos e familiares no novo contexto. A maioria também expressa manter elementos e práticas culturais relacionadas ao seu país de origem, qualificados por alguns como suas raízes: a língua, o sotaque, a comida, as danças, costumes relacionados à família e sua organização e tradições cívicas.
É curioso... Às vezes penso em português, às vezes penso em espanhol... (...) E eu já tô com hábitos de brasileiros, né? Eu quando fui pro Uruguai pela última vez... As pessoas que eu procurei me diziam “tchê, mas como tu tá abrasileirado”, né? Eu não pude evitarlo, né?
(Jaime, Porto Alegre, 55 anos, nascido no Uruguai).
Yo pase una etapa muy difícil en Argentina. Yo vivi en la etapa de la represión. Yo soy de la etapa de la dictadura. Yo pasé pela guerra. Uma casi guerra que hubo com Chile. Y pasé por la guerra de Malvinas
(Julia, Porto Alegre, 48 anos, nascida na Argentina).
Todo o sacrifício que eu fiz valeu a pena e adotei o Brasil como se tivesse nascido de novo. Brasil é tudo que eu tenho, né. Brasil é a minha casa, Brasil foi a garantia de meus recursos econômicos, o Brasil que me deu oportunidade de estudar, são as famílias brasileiras que valorizam o meu trabalho... (...) Tenho duas lindas filhas, uma bela esposa...
(Raúl, Porto Alegre, 57 anos)
1Doutora em Comunicação. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, São Leopoldo – RS. Email: jianiab@uol.com.br
2Doutor em Comunicação. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, São Leopoldo – RS. Email: fabricios@unisinos.br
3Mestre em Ciências da Comunicação. Doutoranda em Ciências da Comunicação no Programa de Pós-Graduação da Unisinos, São Leopoldo – RS. Email: grazielabianchi@yahoo.com.br
4A média de tempo na Espanha é de cinco anos.
5Os usos concretos dos meios de comunicação são amplamente discutidos tanto no relatório final quanto na versão publicada da investigação. Cf. D. COGO; A. HUERTAS BAILÉN; M. GUTIÉRREZ. (Coord.). 2008. Migraciones transnacionales y medios de comunicación: relatos desde Barcelona e Porto Alegre. Madrid, Los Libros de la Catarata.
6A identificação gaúcha a que nos referimos alude a uma identidade historicamente elaborada para demarcar a pertença ao estado do Rio Grande do Sul e estabelecer a sua distinção no contexto nacional. Forjada com referentes culturais e históricos da região e constantemente reatualizada e reelaborada, esta identidade tem na figura do gaúcho um dos eixos centrais de sua construção, tipo social que faz referência ao cavaleiro e peão de estância da região sudoeste do Estado. Tipos similares se encontram na cultura uruguaia e argentina, remetendo a matrizes culturais históricas comuns na formação da região do Prata (Oliven, 1992).
7São quatro migrantes provenientes do Uruguai, três da Argentina e um do Chile.
8O total de entrevistas, realizadas em Porto Alegre, em que a relação com o Mercosul aparece é 39.
9O total de entrevistas, realizadas em Porto Alegre, em que a relação com a América Latina aparece é 50.
10O total de entrevistas, realizadas em Barcelona, em que a relação com a América Latina aparece é 39.
11Número relativo ao total de 21 entrevistados em que essa questão foi abordada.
12Proporções relativas a 54 entrevistados que responderam esse tópico.
13Relacionado a 19 entrevistados que responderam a esse questionamento.
14Proporção relativa a 38 entrevistados que responderam a esse questionamento.
15Vale dizer que estes são os termos genéricos – e de senso comum – utilizados pelos próprios migrantes no momento em que se auto-definem, em que se põem a falar sobre o modo como praticam (ou não) a inserção legal no país de acolhida. Maiores definições e explicações sobre estas condições de ilegalidade não foram pedidas e nem nos pareceram necessárias neste momento de nossa formulação.
Referências
BAUMAN, Z. 2001. Modernidade líqüida. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 260 p.
COGO, D.; HUERTAS BAILÉN, A.; GUTIÉRREZ, M. (coord.), 2008. Migraciones transnacionales y medios de comunicación: relatos desde Barcelona e Porto Alegre. Madrid, Los Libros de la Catarata, 168 p.
GARCÍA CANCLINI, N. 1997. Cultura y comunicación: entre lo global y lo local. La Plata, Ediciones de periodismo y comunicación, 133 p.
GARCÍA CANCLINI, N. 1998. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo, EDUSP, 416 p.
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Submetido: 20/06/2008, aceito: 20/07/2008