doi: 10.4013/ver.20083.03

Charge jornalística e poesia: interfaces entre comunicação e arte

Journalistic cartoon and poem: interfaces between communication and art

Luciana Coutinho Pagliarini de Souza1

luciana.souza@uniso.br

Maria Ogécia Drigo1

maria.drigo@prof.uniso.br

Resumo

Pretende-se rastrear o processo sígnico da charge em busca de procedimentos que configurem a presença do poético nos seus interstícios. Assim, explicita-se a charge como sistema de linguagem, fundamentando-se em teorias de Charles Sanders Peirce às quais se alinha o conceito da função poética, a partir dos estudos de Roman Jakobson; do método ideogrâmico de compor teorizado por Fenollosa; da metáfora por conflito que caracteriza a montagem erigida por Eisenstein para tentar comprovar que o percurso da secundidade à primeiridade, ou do índice ao ícone, instaura o poético.


Abstract

The aim of this article is to search the sign process in a cartoon, looking for the poetic essence procedures that may take part in its language. The cartoon is shown as a language system, according to Charles Sanders Pirece Theory, which is connected to the poetic function, based on Roman Jackobson studies; by ideogram method of composing, based on Fenollosa; metaphor conflict that is characterized on Eisenstein concepts, in order to try to prove the course of secondness to firstness, or index to icone, that turns to the formation of poetic.


Introdução

A voz do político surge de um acordo tácito ou explícito entre seus representados; a voz do escritor nasce de um desacordo com o mundo ou consigo mesmo, sendo a expressão da vertigem que se desagrega. O escritor desenha com suas palavras uma falha, uma fenda. E descobre no rosto do Presidente, do César, e no Pai do povo, a mesma falha, a mesma fenda. A literatura desnuda os chefes de seu poder e assim os humaniza. Devolve-os a sua mortalidade que é também a nossa.
Octavio Paz3

Nas palavras de Octavio Paz, que escolhemos como epígrafe, reside o papel do escritor, cujos preceitos, pensamos nós, caberiam também na caracterização do papel do chargista. Também ele é capaz de desenhar com seus “traços” uma falha, uma fenda; de desnudar os chefes do poder e, conseqüentemente, exercer a função intrinsecamente humanizadora que sempre coube à Literatura. Através do humor, a charge põe a nu as fissuras do sistema. A partir daí nos perguntamos: seria possível encontrar na charge traços que permitam vislumbrar a presença da linguagem poética, instância do literário? Sendo possível, como ela se tece? Este artigo se propõe a buscar respostas ou quase-respostas a essas questões.

Ancorados nos conceitos da semiótica peirceana, no conceito de função poética de Jakobson, nas idéias de Fenollosa sobre haicais a partir dos estudos de Haroldo de Campos apresentamos, num primeiro momento, a charge como sistema de linguagem para depois vislumbrar a possibilidade de flagrar os mecanismos que a aproximam da poesia.

A charge como linguagem do choque

A charge que tomamos como objeto dessa pesquisa é o gênero jornalístico – impresso, portanto – que, ao lado das fontes tradicionalmente utilizadas para o conhecimento de uma sociedade, destaca-se como registro de época que lega às futuras gerações o modo de ver, de pensar, de deliberar de uma época que o tempo modifica. Registra, como num instantâneo, a visão popular perante um fato, a confluência de ideologias vigentes, indiciando uma sociedade que se vê, que indaga sobre si própria. Sua pertinência está em trazer à luz aspectos relevantes do cotidiano, condensando-os numa única configuração, criando, assim, uma imagem de impacto, em contraste com o texto discursivo.

A charge se organiza através da concreção de formas. É uma realidade sensível que contém, em seu conjunto, uma potencialidade significativa que apela para a nossa razão, para os nossos sentidos. Cabe ao leitor/receptor apreender os fenômenos físicos da charge, conectá-los através da experiência prévia que, enquanto sujeito, tem em relação ao objeto, reconhecendo-o, inserindo-o no conjunto dos demais elementos e, finalmente, dando nome às coisas através de signos convencionais. Assim é que a charge deixa marcas humanas inseridas no espaço e no tempo; é objeto da cultura, de representações e reoperações do mundo feitas pelo homem, para que ele próprio se adapte à realidade estabelecida ou a perfure; é processo de trabalho que deixa pegadas sensíveis conformadoras ou deformadoras, de modo a permitir um reflexo ou uma refração da realidade. Enquanto objeto da cultura, fruto, portanto, de processos de produção cultural e, conseqüentemente, de práticas: as práticas nas e com as linguagens que o homem cria, reproduz e transforma (Santaella, 1980), a charge constitui-se como linguagem e, numa visada semiótica, como um sistema de signos. Toda linguagem funciona como tal porque representa (símbolo), indica (índice) ou sugere algo (ícone): esta é a classificação peirceana do signo com relação ao objeto e terminologia de que lançaremos mão no desenvolvimento de nossas idéias.

A charge enquanto materialidade concreta – e aqui novamente nos baseamos nos conceitos de Charles Sanders Peirce – possui signo (representamen), objeto e interpretante, ou seja, uma coisa só é tal coisa porque está submetida a essa relação. A maneira como ela capta o real revela sua faceta: ela pode ser realimentadora da ideologia dominante ou revelar, por força do objeto dinâmico, uma outra realidade que desorganiza a hegemonia ideológica. As formas deixam a nu as fissuras do sistema, mostram as contradições e o não-senso ideológico, abalam as pilastras da oficialidade, visto que desmascaram ou criam novas necessidades, à medida que a ideologia está presente, como quer Volosinov (apud Santaella, 1980), numa realidade materialmente concreta, quer seja palavra, som, cor, linhas, massas.

A charge se inscreve no universo da secundidade peirceana. Lembremos que, para Peirce, todo e qualquer fenômeno (phaneron) seja um gesto, uma sensação, um quadro, uma pintura, um pôr-do-sol, um sentimento, uma dor, uma obra qualquer é apreendido pela mente a partir das três categorias do pensamento, os três caminhos mais simples e elementares de se entender um fenômeno. Estas maneiras de um fenômeno impactar uma mente são as três categorias do pensamento e da natureza, que poderíamos denominar primeiridade (1), secundidade (2) e terceiridade (3). Portanto, suas três categorias são os alicerces de toda a sua obra.

Segundo Santaella (1993, p.36), primeiridade (1.) seria começo, aquilo que tem frescor, é original, espontâneo, livre. Secundidade (2.), aquilo que é determinado, terminado, final, correlativo, objeto, necessitado, reativo. Terceiridade (3.), meio, devir, desenvolvimento.

Estas maneiras de um fenômeno impactar uma mente, isto é, as três categorias do pensamento e da natureza, suportam o caráter triádico da semiótica peirceana. Portanto, especificamente na charge, traço, formas, figuras, tinta, enfim, as qualidades materiais que fazem o signo “charge” ser visível e reconhecido como tal caracteriza sua primeiridade (1.). O fato daquele desenho, figura, forma etc. apontar para algo ou alguém existente no mundo considerado real caracteriza sua secundidade. Já tanto as palavras ou frases (se presentes) ou mesmo o sentido, a conclusão que o leitor possa tirar, ancoram-se na terceiridade (3.).

Contudo, é seu papel de representar uma realidade tecida por conflitos que faz com que a charge seja predominantemente secundidade e é sob esse aspecto que ela se constitui como linguagem de choque, enfoque que ora escolhemos. Em se tratando de realidade, a secundidade é predominante, porque a realidade é que insiste sobre nós, exigindo nosso reconhecimento como algo não criado pela nossa mente. (...) A realidade é ativa. Nós a reconhecemos, chamando-a de atual (palavra usada por Aristóteles, derivada de energeia, ação, ato, que designa existência, em oposição a um mero estado germinal). (CP 1.325). Enfim, realidade é o reino da secundidade porque implica relação, reação, choque, esforço, resistência; mundo dos seres, objetos, fatos; mundo concreto, palpável, existente, visível, audível, tátil.

A linguagem da charge requer ainda uma leitura relacional e ativa, que possibilite ao receptor articular informações, perceber outros sistemas de linguagem submersos, reorganizá-los, como possibilidade renovada de repertório. O emissor cria um produto decorrente da percepção da interferência de outros códigos no seu universo mental e exige da mente perceptora o mesmo processo. Resgatar os elementos perceptíveis na charge é uma atividade do interpretante peirceano. O interpretante é o terceiro elemento da tríade – signo, objeto, interpretante – que, para Peirce, compõe o signo genuíno. É o interpretante que impulsiona a ação, a atividade relacional do signo, senão vejamos.

O interpretante dinâmico, que produz efetivamente um efeito em nossa mente, por estar intimamente relacionado ao fato – objeto do signo da charge –, aponta para o reconhecimento, o que exige ação e reação. O riso – interpretante maior desse signo – irrompe desse reconhecimento. O resgate da qualidade sensível do signo, da sua revelação, cabe ao interpretante imediato, isso é, ao interpretante em nível de primeiridade, como mera possibilidade, potencialmente apto a produzir algum efeito. E nesse ínterim, a mente interpretadora elabora o signo novo, denso e criativo.

Na contramão do discurso monológico – enquanto discurso autoritário, auto-referencial, absoluto – a charge se investe do discurso dialógico, altamente carnavalizante, que por força interpretativa abrange toda a multiplicidade de planos e contradições do real, num perpétuo olhar o outro, num processo contínuo de intertextualização. Esta é a tarefa da charge. Este olhar o outro gera o humor do traço, humor decorrente da espreita entre os códigos visual e o verbal. O humor não é o brilho instantâneo de uma frase ou grafismo isolados, mas uma força que provém de todo um contexto, da vida prévia do personagem e das relações entre os seres humanos numa situação dramática, complexa, específica.

O observador de uma situação humorística deve, subjetivamente, identificar-se com o objeto do seu riso e, portanto, o objeto de sua risada é ele próprio. Na verdade, é toda a realidade da qual faz parte tanto ele como o objeto de seu riso. O humor destrói não o individual, mas o finito no seu contraste com o infinito. Nesta idéia de universalidade, o humor não representa bobos ou tolos individuais, mas a tolice num mundo tolo.

Enfim, o humor como a expressão de uma natureza humana, por si só e em suas relações sociais e cômicas, é uma estranha mistura ao mesmo tempo sublime e ridícula. É uma fonte essencial de sensibilidade e melancolia, um alívio e uma defesa contra as tristezas da vida que sempre pesam mais naquele de sensibilidade mais aguçada.

Feita essa sucinta abordagem da charge como sistema de signos que apresenta relações triádicas; como elemento realimentador ou contestador da ideologia dominante; como processo que vive à espreita do humor; como linguagem que exige leitura relacional e ativa, podemos buscar na charge a realização do poético: pedra de toque desse artigo.

A tessitura do poético na charge

Poético é aqui tomado no sentido que Jakobson (1969) o tratou ao especificar as funções que a linguagem assume no processo comunicativo. Centralizada na mensagem, revelando recursos imaginativos elaborados pelo emissor, a linguagem poética é conotativa, metafórica, sugestiva... Retomemos os métodos de associação para aclararmos a teoria de Jakobson.

Os métodos de associação trabalham as leis da mente e são inerentes ao desenvolvimento de qualquer processo criativo. O primeiro pesquisador a investigar as formas básicas de associação – similaridade e contigüidade – foi David Hume, mas é com Peirce que se chega a resultados mais claros da distinção dessas formas utilizadas como eixos de estruturação do pensamento e, portanto, da linguagem. Para o autor, nas associações por contigüidade, o sistema de pensamento, decorrente da experiência, é o mais simples de todos os raciocínios. São específicas da contigüidade as organizações mentais decorrentes da causalidade, que obedecem a uma lógica discursiva ou linear, de causa e efeito, de princípio, meio e fim, enfim, associações estruturadas por subordinação, por uma hierarquia portanto, cujas partes do signo mantêm entre si relações de proximidade. Já na associação por similaridade, o sistema decorre de situações mentais analógicas ou de semelhança que envolve maior complexidade e as associações são estruturadas por coordenação. Se buscarmos relações com a teoria de Saussure, contigüidade e similaridade, respectivamente, passam a sugerir os dois eixos de linguagem definidos pelo próprio lingüista: sintagma (subordinação / combinação de elementos / reunião) e paradigma (justaposição / seleção de elementos / modelo). Enquanto predomina a hierarquia na associação por contigüidade, predomina na similaridade a construção de caráter justaposto, própria da similaridade ou semelhança.

A função poética, segundo Jakobson (1969, p.130), dá-se pela projeção – princípio de equivalência do eixo da similaridade (seleção) – sobre o eixo da contigüidade (combinação). A equivalência é promovida à condição de recurso constitutivo da seqüência. O que se evidencia nessa projeção é o “caráter palpável dos signos”.

Nos moldes peirceanos, podemos relacionar os símbolos aos signos que se organizam por contigüidade ou por um processo de combinação ou construção da seqüência; os ícones, aos signos que se organizam por similaridade ou pelo processo de seleção que se “perfaz com base na equivalência, semelhança e dessemelhança, sinonímia e antonímia (...)”. Os índices funcionam aqui como fronteiras. Desta forma, os signos por contigüidade estariam mais presentes na linguagem verbal; enquanto que na similaridade seriam privilegiados os signos de natureza não verbal.

Ora, a função poética não se limita à linguagem verbal. Pignatari (1979) enfatiza que, apesar de o ícone ser o signo da arte e o símbolo, o signo da ciência e da lógica, nada impede que ambos se confundam nos mais altos níveis de criação. O autor ainda ressalta o fato de que ao invés de "associações de idéias" produzem-se "associações de formas". Nessa medida, "o significado de um signo é um outro signo e esta função significante é exercida pelo interpretante que, por sua vez, é icônico por natureza (...) não se pode ter uma idéia (terceiridade) isolada de sua forma (primeiridade)" (Pignatari, 1979, p.115). O processo de associação de formas, por sua vez, dá-se como produto de organização do pensamento inseparável das categorias peirceanas do pensamento: primeiridade, secundidade e terceiridade.

Seguindo ainda os passos de Jakobson, resta dizer que são duas as figuras de retórica que predominam nesses processos: a metonímia e a metáfora. A metonímia constitui-se como parte de um todo, designa objetos que são fragmentos da realidade. Tomar a parte pelo todo prevalece no eixo da combinação. Já a metáfora prevalece no eixo da seleção, à medida que estabelece relações de semelhança entre duas coisas.

Segundo Jakobson, a poesia configura-se como poesia por colocar-se no pólo da metáfora. É a metáfora o mecanismo que recobre a poesia de visualidade imagética, provocando o aparecimento de “quadros de palavras”, torna palpáveis os signos e realiza desta forma a função poética. Ora, a metáfora enquanto utiliza “imagens materiais para sugerir relações imateriais” – e aqui retomamos o estudo de Haroldo de Campos (1977b, p.41) sobre a tese fenollosiana – é exatamente o método ideogrâmico de compor. Chegamos aqui ao ponto em que charge e poesia tangenciam.

A título de atarmos os fios teóricos, lembremos a grande afinidade do método ideogrâmico com o processo metafórico e com a montagem eisensteiniana.

A montagem eisensteiniana configura-se como o choque entre duas tomadas (pictogramas) que traz à luz o conceito. Essas tomadas isoladas correspondem a metonímias que, num processo de colisão, conflito, concorrem para a metaforização ou produção de um conceito. Toda metáfora, na acepção de Jakobson, supõe uma relação de traços metonímicos, e a metonímia “é sempre uma hipótese seletiva. Um corte. Traduz sempre uma visada crítica” (Campos, 1977b, p.93).

Pois bem, todo esse tecer teórico é o suporte para compreendermos a semelhança estrutural entre a charge e o haicai. Este último nada mais é que os mesmos hieróglifos/pictogramas/tomadas transpostos em frases: uma poesia que incorpora o não-verbal nas próprias malhas de relação do verbal, realização mais cabal da função poética.

Charge e haicai caracterizam-se pelo registro sintético ou condensado do real. O poder imagístico do haicai faz com que, segundo Haroldo de Campos (1977a, p.65), ele funcione “como uma espécie de objetiva portátil, apta a captar a realidade circunstante e o mundo interior, e a convertê-los em matéria visível”. A charge, por sua vez, opera a fusão entre palavra e imagem de modo a provocar o choque que produz um conceito.

Sob a ótica peirceana, a estrutura ideogramática do haicai e também a da charge, faz com que ambos tornem-se diagrama ou um ícone de relações. No diagrama, o objeto se manifesta por meio de uma estrutura relacional do signo que assegura a similaridade ou modo de primeiridade através de relações entre as partes do signo. As frases/pictogramas, no haicai, estão em tal grau de relação com o objeto, que o sugerem, não a modo de uma “imitação servil”, mas do estabelecimento de uma analogia com suas qualidades; da mesma forma, enquanto “retrato do real”, as charges são formas figurativas essencialmente indiciais, pois “buscam reproduzir o aspecto exterior das coisas, os elementos visuais são postos a serviço da vocação mimética, ou seja, reproduzir a ilusão de que a imagem figurada é igual ou semelhante ao objeto real” (Santaella, 2001, p.227). Contudo, a charge reproduz personagens e situações do mundo político, acentuando e deformando seus traços de modo a revelar suas imperfeições. Ora, a realidade que pulsa nesse campo de forças se corporifica na charge tecida pela qualidade (qualis) que impregna a materialidade sígnica que a constitui; ícone, portanto.

No haicai, acionada a junção dos pictogramas/frases isolados, irrompe o conceito abstrato, uma nova relação engendrada dessa articulação: a metáfora por conflito. Da mesma forma, acionada na charge a articulação entre imagem e palavra ou entre fragmentos do real revelados tão-somente pela imagem é deflagrado o riso que, por sua vez, traz à luz o conceito que irrompe dessa relação. Ora, para Peirce a metáfora é um ícone degenerado que, segundo Pignatari (ibid., p.12) “é um curioso fenômeno de analogia por contigüidade” já que a analogia por ela estabelecida não está nos próprios signos (palavras, símbolos), mas nas coisas ou objetos designados por eles.

A metáfora espera que uma mente interpretadora estabeleça as relações por ela suscitada entre o signo e o interpretante. E o que é o interpretante senão um processo relacional em que um outro signo traduz o significado do primeiro?

Prossigamos na descrição da estrutura do haicai, agora, em termos semânticos para depois compararmos com a charge. No primeiro verso/tomada tem-se o elemento de “permanência”, condição geral, absoluta; no segundo, um elemento de “transformação”, uma “percepção momentânea” que implica em uma mudança, conflito. Finalmente, no terceiro verso, relacionado ao conceito abstrato que brota da justaposição entre o primeiro e o segundo elemento está o resultado da interação entre a ordem geral e o evento. (Plaza, 1984). Esta estrutura do haicai permite que ele se constitua num detonador de ícones e imagens-diagramas mentais, possuindo assim um caráter icônico-indicador.

Sob o aspecto acima descrito, a charge se estrutura a partir do grafismo e do código verbal: esta é a tipologia da charge escolhida para exame neste artigo. Num primeiro momento, o elemento de permanência refere-se aos aspectos contextuais dos quais a charge necessita para garantir a referencialidade correspondente ao objeto dinâmico. O segundo elemento de transformação é dado pela maneira como a realidade ou objeto dinâmico se apresenta no signo, isto é, como objeto imediato. Nesta instância é instaurada a qualis ou as qualidades inerentes à natureza do signo que permite analogias inusitadas. Não nos esqueçamos de que tudo se passa nos meandros da representação. Finalmente, na charge, o terceiro elemento que brota do conflito entre objeto dinâmico e imediato é o conceito que o interpretante faz eclodir. O resultado é a proposição de uma outra qualis – a distorção do real – responsável pela fissura ou a brecha que se revela via humor, via carnavalização. O choque é palavra-chave nessa relação. O riso concretiza a abstração.

Charge e poesia: interfaces

Na tentativa de trazer à luz o enlace entre charge e poesia, escolhemos uma charge da Folha de S. Paulo para dialogar com um fragmento de Sousândrade (1979) – O inferno de Wall Street. A opção pela poesia de Sousândrade deveu-se ao caráter carnavalizante e ideogramático revelado pelas “sutis justaposições de tomadas convencionais, nas estudadas interpolações de termos franceses, no fraseado que contrasta o sentimentalismo tradicional com a irreverência, fazendo a crítica do moralismo de salão e ao pieguismo”. (Campos, Haroldo e Augusto, 1982, p.39)

Figura 1.Folha de S. Paulo (28/09/2006).

Apresentando como objeto dinâmico o período eleitoral referente ao segundo mandato do presidente Luis Inácio Lula da Silva – tempos sombrios marcados por crises que deixavam à mostra a fragilidade moral do governo (mensalões, dólares na “cueca”, queda de ministros essenciais por prevaricação, formação de quadrilhas e outros), irrompe desta charge, de forma grotesca e carnavalesca, a figura “pesada” de uma ética personificada, em contraste com a pequenez de um personagem cujo traçado evoca o presidente em questão. O contraste é o elemento mais importante das técnicas visuais, à medida que, segundo Dondis (1997, p.121), “é o aguçador de todo o significado, é o definidor básico das idéias”.

O desequilíbrio nesse campo de forças dado pela desproporção das personagens é, portanto, sintomático; mas é a palavra que, ao corroborar a identidade da “pesada senhora”, fixa o sentido. Aqui, pequenez ou qualidade de ser pequeno assume tanto o sentido denotativo – a estatura do presidente –; como o conotativo – o valor de inferioridade ou de insignificância à luz de valores morais. Verifica-se, assim, a metáfora da distorção desses mesmos valores.

Podemos dizer que a charge é mimética até certo ponto: ela tem de reportar o receptor ao seu universo, mas ela foge da mera imitação quando instaura a qualis ou qualidade enquanto natureza do signo. É desse choque que surge o humor.

Este manuseio da qualis pela charge pode encontrar paralelo nos versos de Sousândrade (Inferno de Wall Street) o qual, a modo de charge, sintética e ideogramaticamente, o autor carnavaliza o nobre e estabelecido, questionando-o, portanto.

(Oscar-Barão em domingo atravessando a TRINDADE, assentando o binóculo, resmirando, resmungando,de tableaux vivant, cortejando: o povo leva-o a trombalhões para fora da igreja:)


- Cobra! Cobra! (Watch so a big noise?!...)
Era o meu relógio… perdão!...
São ‘pulgas’ em Bod
Me acode!!...
God? Cód! Sir, we mob, you go dam! (X, 28)

Para Augusto e Haroldo de Campos, esta estrofe constitui-se como sendo das mais elípticas da seção “Wall Street”. “Monossílabos se entrechocam (“bod”, “god”, “cod”) e ressoam em outros vocábulos (“cobra, “acode”, “mob”), para efeitos de bufoneria fonética.” (1982, p.81)

A mistura do sério com o irreverente, do sagrado com o profano apresenta neste poema uma visualidade crítica, sedenta de sensacionalismo, fazendo o signo emergir agressivamente como força de uma patada diante da mente perceptora. As palavras, pela organização sintática, tornam-se trovejantes: operam um tiroteio verbo-voco-visual. Este tipo de manipulação sígnica opera uma fantástica fragmentação. E perguntamos: o que é a charge senão flocos informacionais desvirtuados e distorcidos?

Nesses versos a fragmentação começa a se estabelecer pela intromissão de sintagmas de língua inglesa que interceptam os de língua portuguesa, percorrendo o caminho da variação – cobra, relógio, pulga – como elementos táteis e sonoros do barulho e continuando na captação de fanfarronice sonora que flagra as ações diversas e movimentadas, dessacralizadoras de um ambiente sagrado “TRINDADE”. Os monossílabos ‘big’, ‘bod’, ‘cod’, ‘mob’, ‘go’, ‘dam’ ressoam em outros vocábulos – COBra, perdão, pulgas, acode – aspectos esses vislumbrados por Augusto e Haroldo de Campos – e realizam uma montagem simultânea e inclusiva.

A fragmentação, por sua vez, enquanto bufoneria fônica, desmorona a aristocracia de Oscar-Barão e o coloca como vítima de uma exposição sensacionalista. A fanfarronice de Oscar-Barão corporifica-se na manipulação recortada de suas ações que são apresentadas à mente perceptora como o grotesco que capta o ridículo da nobreza, fazendo o alto e o baixo, o nobre e o vulgar conviverem no mesmo espaço.

Ora, converter dominantes e nobreza em bonachões irreverentes, atribuir a eles um tom de deboche para provocar a irrupção do riso são processos comuns às charges e aos versos de Sousândrade. Ambos se estruturam ideogramaticamente e esta estrutura instaura o outro, determina o outro; deixa visíveis os elementos que não apenas se justapõem, mas se interagem, colidem, produzindo conceitos e isso possibilita flagrar o diálogo ou a superposição entre os textos. É a linguagem que se carnavaliza, abolindo distâncias e uniteralidades, deixando visível a junção de significados e signos que se conflitam. Desse conflito irrompe a visão carnavalizada do mundo.

Considerações finais

Nossa proposta neste artigo consistiu na busca de verificar a presença da linguagem poética nos interstícios da charge. Na comparação entre charge e poesia, buscamos examinar convergências relativas ao aspecto estrutural e semântico. Procedimentos comuns foram se delineando – a linguagem sintética e condensada que, segundo a ótica fenollosiana, é caracterizadora do método ideogrâmico de compor; a presença de metáforas de choque análogas à montagem eisensteniana; a carnavalização – e a aproximação com o haicai foi se delineando.

Ancorados pela teoria peirceana, como mapa de observação, verificamos a forte presença do ícone, signo detonador do trabalho poético. Na charge, a presença do ícone (primeiridade) advém do percurso que tem nas marcas indiciais (secundidade) o ponto de partida. A charge como sistema de signos está inserida no universo da segunda categoria peirceana, a secundidade. Secundidade enquanto instância do choque, do aqui e agora, dos conflitos que a existência nos impõe. Em seu corpo gráfico que se tece da espreita entre o código visual – de linhas, massas, movimento, direção, peso – e o verbal – a palavra – a charge reproduz o conflito que impregna seu objeto dinâmico: o contexto político, econômico e social. Há, portanto, um isomorfismo entre signo e objeto: a tensão que caracteriza o campo de forças está dentro e fora do signo – instaura-se a qualis. Ao reproduzir em traços a dinâmica do real, o ícone ganha espaço. Rompe-se a transitividade do signo para fazer voltá-lo sobre si mesmo, buscando não retratar a coisa, mas ser a coisa. Dessa relação irrompe o poético que, em termos jakobsonianos, seria a projeção do eixo da similaridade sobre o da contigüidade. Ora, o ícone (território da qualis) na concepção de Peirce é o modo de representação (ou quase representação) mais próximo do poético. Secundidade desembocando na primeiridade, portanto.

O caráter sintético da charge, esse poder de condensar numa única configuração uma versão de um fato político descomprometida do discurso monológico do poder tem a estrutura ideogramática própria dos haicais. Estruturada de maneira análoga, a poesia analisada de Sousândrade dialoga com a charge não somente nos aspectos estruturais, mas semânticos, pois a carnavalização também é comum em ambos. Ocorre, na verdade, uma contaminação sígnica – uma linguagem ilumina a outra – e as analogias proliferam devido à proeminência do ícone enquanto matriz proliferante de analogias.

Assim é que, rastreando o processo sígnico da charge em busca de elementos que configurassem a presença (ou predomínio) da função poética, sentimos a necessidade de confrontar/comparar charge e poesia. Deste confronto, um signo passou a iluminar o outro e nele encontramos o trabalho efetivo do signo que aspira ser primeiro, anulando assim a distância entre signo e referente/objeto. Charge e poesia têm em comum a predominância do ícone, do poético, portanto.

1Doutora em Comunicação e Semiótica – PUC / SP, professora do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso), Sorocaba / SP. E-mail: luciana.souza@prof.uniso.br

2Doutora em Comunicação e Semiótica – PUC / SP, professora do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso), Sorocaba / SP. E-mail: maria.drigo@prof.uniso.br

3PAZ, Octavio. O escritor e a política. Cadernos de opinião,1, Rio de Janeiro, Inúbia.

4Tradução livre de nossa autoria, a partir do CD-ROM Intelex Corporation, com a coletânea de HARTSHORNE, C. & WEISS, P. (vols. I-VI), 1959, e BURTS, A. W. (vols. VII-VIII), 1958. The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Harvard University Press, 1994.

Referências

BAKHTIN, M. 1996. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec, 419 p.

BAKHTIN, M. 1997. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 239 p.

CAMPOS, H. (org.). 1977a. A arte no horizonte do provável. São Paulo, Perspectiva, 237 p.

CAMPOS, H. (org.). 1977b. Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo, Cultrix, 275p.

CAMPOS, H.; CAMPOS, A. (orgs). 1982. Revisão de Sousândrade. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 477 p.

DONDIS, D.A. 1997. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo, Martins Fontes, 236 p.

JAKOBSON, R. 1973. Lingüística e comunicação. São Paulo, Cultrix, 162 p.

LOBO, L. 1979. Tradição e ruptura: o Guesa de Sousândrade. Edições Sioge, São Luis, 102 p.

PAZ, O. 1975. O escritor e a política. In: C. FURTADO, Cadernos de opinião 1. Rio de Janeiro, Inúbia, 111 p.

PLAZA, J. 1987. Tradução intersemiótica. São Paulo, Perspectiva, 217 p.

PIGNATARI, D. 1979. Semiótica e literatura. São Paulo, Cortez e Moraes, 195 p.

PIGNATARI, D. 1981. Comunicação poética. São Paulo, Cortez e Moraes, 59 p.

SANTAELLA, L. 1980. Produção e linguagem e ideologia, São Paulo, Cultrix, 160 p.

SANTAELLA, L. 1995. A teoria geral dos signos: semiose e autogeração. São Paulo, Ática, 153 p.

SANTAELLA, L. 2001. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo, Iluminuras, 431 p.

SOUSÂNDRADE, J. 1979. O Guesa. São Luís, Edições SIOGE.

CD-ROM Intelex Corporation, com a coletânea de HARTSHORNE, C. & WEISS, P. (vols. I-VI), 1959, e BURTS, A. W. (vols. VII-VIII), 1958. The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Harvard University Press, 1994.

Submetido: 04/11/2008, aceito: 26/11/2008