doi: 10.4013/ver.2009.23.52.09

Teoria crítica e pós-humanismo na cibercultura
Critical theory, post-humanism and cyberculture

Marcelo Ruschel Träsel
marcelo.trasel@pucrs.br

RESENHA

RÜDIGER, F. 2008. Cibercultura e pós-humanismo: exercícios de arqueologia e criticismo. Porto Alegre, EdiPUCRS, 239 p.

Em Cibecultura e pós-humanismo: exercícios de arqueologia e criticismo, Francisco Rüdiger empreende um duplo esforço: por um lado, resgata na literatura, nas artes visuais, na música e no cinema os primeiros sinais do pós-humanismo que seria um dos elementos fundamentais do imaginário da cibercultura; por outro lado, realiza uma crítica das manifestações pós-humanistas na filosofia, na ciência, na cultura e na política, evidenciando alguns eixos dentro dos quais a cibercultura deve evoluir, mantidas as configurações sócio-econômicas e culturais contemporâneas. Trata-se de um estudo crítico da cibercultura centrado na questão do pós-humanismo, da qual o autor procura dar conta através de oito ensaios.

Os quatro ensaios iniciais realizam uma arqueologia da cibercultura. O primeiro analisa a dialética homem-máquina na literatura, partindo dos textos A máquina parou, de Edward Forster, e Simulacron 3, de Daniel Galouye. Após ressaltar o imaginário de autodestruição da espécie pela rendição ao pensamento tecnológico, em Forster, e a ideologia de mercado subjacente a uma novela romântica pretensamente questionadora da tecnocracia, em Galouye, Rüdiger conclui que na literatura a questão do pós-humanismo parece ainda não ter se resolvido. Propõe, então, que se busque uma nova abordagem, a da “simulação ficcional de um ponto de vista pós-humano” (p. 59), com o intuito de avançar na reflexão e no esclarecimento do sentido de nossa civilização.

A seguir, Rüdiger apresenta sua apreciação da obra do designer suíço Hans Giger, conhecido como o responsável pela concepção dos monstros da série cinematográfica Alien. Na pictografia de Giger, o autor encontra uma distopia perversa, fascinada com as monstruosidades que podem resultar de uma hibridação entre homem e máquina. Nas fantasias eróticas desenhadas por Giger, pode-se vislumbrar o desejo de redenção da condição humana através da conjunção com a tecnologia e, ao mesmo tempo, o alerta para o significado desse projeto, isto é, o fim do humano. Apesar disso, a obra de Giger ainda se insere numa lógica mercantil, sujeita à indústria cultural.

O exemplo trazido da música para realizar esta arqueologia do pós-humano é o grupo alemão Kraftwerk, por seus esforços em elaborar musicalmente o pensamento tecnológico. Embora pretendam criar as sinfonias adequadas a uma época em que o humano e o maquínico passam a conviver em simbiose, Rüdiger identifica no fundo do imaginário do grupo uma resignação com o destino do homem, não um entusiasmo. Embora a tentativa fosse colocar a estética a serviço do pós-humanismo, suas criações terminaram engolidas pela indústria cultural e regurgitadas no sem-fim de gêneros de música eletrônica atuais. Ainda assim, o Kraftwerk é visto aqui como modelo de atuação artística consciente num ambiente dominado pelo mercado.

O ensaio final da primeira parte trata dos filmes 2001: uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick, e Inteligência Artificial, de Kubrick e Spielberg. A análise do primeiro filme mostra como o diretor consegue escapar ao pensamento tecnológico ao se perguntar sobre a origem da razão humana, propondo em uma solução mitológica, conforme Rüdiger, que a origem desta seja em última instância vedada ao nosso conhecimento. Inteligência Artificial, iniciado por Kubrick e finalizado por Spielberg, por outro lado, merece destaque na medida em que apresenta sinais já avançados de estabelecimento do pós-humanismo na consciência do Ocidente atual. Seriam sintomas de que a figura do humano já está sendo abandonada em prol da figura da reconciliação entre homem e máquina.

A primeira parte desenha um panorama a partir do qual os textos seguintes podem ser melhor compreendidos. Como afirma Rüdiger, “a ficção científica é uma forma cultural que articula simbolicamente nosso acesso à vida que vai surgindo com o avanço da tecnociência maquinística” (p.137). As fantasias futuristas, com suas máquinas, mutantes, alienígenas e outras entidades amedrontantes ou fascinantes são uma maneira de elaborar os problemas oriundos da vida social, trabalhar os conflitos do próprio ser humano.

Os quatro ensaios da segunda parte tomam a forma de estudos políticos e prospectivos. Eles giram em torno principalmente dos movimentos políticos pós-humanistas. Nesse contexto, um indivíduo pós-humano é entendido como entidade orgânica ou maquínica de capacidades físicas e intelectuais superiores à do ser humano atual, autoformativa e transcendente (isto é, imortal ou pretendente à imortalidade). O primeiro ensaio crítico aponta os elementos históricos que levaram ao surgimento de grupos que defendem nossa transformação nesse tipo de entidade.

O segundo ensaio investiga a natureza epistêmica e filosófica da noção de pós-humano. Partindo de Nietzsche e passando por Spengler, Heidegger e Sloterdijk, Rüdiger posiciona essa figura em uma grade epocal. Apresenta idéias desses autores para sugerir que a figura do homem, surgida no Mundo Clássico e transformada em plataforma política a partir da Renascença, como Iluminismo, é uma formação historicamente localizada que veio substituir outras visões do lugar do ser humano no mundo e pode, portanto, ceder sua posição a uma nova figura. No caso, o pós-humano.

O autor aborda em seguida os programas em si dos movimentos pós-humanistas, caracterizando suas demandas como biopolíticas, visto que seu objeto primordial de disputa é a própria vida. O autor não leva a sério as propostas destes movimentos, de resto socialmente insignificantes no momento, mas vê nelas uma problemática fundadora dos tempos modernos e sinais de que, futuramente, podemos ver distúrbios e revoluções ocorrendo na tensão entre aqueles que tentarão defender o humanismo e os pós-humanistas.

A culminação das idéias expostas ao longo da obra está na discussão sobre o pós-humano levada a cabo no último ensaio. O conceito é criticado em seus sentidos histórico, metafísico e existencial. Aqui Rüdiger levanta questões essenciais para aqueles preocupados com o futuro do homem. A mais perturbadora delas é: O que ocorrerá com o pensamento, com a racionalidade, se e quando o ente humano finalmente se abandonar à conjunção com a máquina? Poderemos continuar existindo? A resposta a este problema é também a resposta ao problema do pós-humano: “Cremos que, exceto por uma mutação ontológica, associada ou não ao desenvolvimento científico e maquinístico, o futuro jamais será pós-humano se (...) a tecnologia não nos privar do que faz do pensamento um pensar” (p.220). O autor conclui a obra em tom otimista, apesar de tudo, defendendo que a crítica e, portanto, o pensar, tem chance de sobreviver nesta nova configuração da indústria cultural denominada cibercultura.

De fato, há um objetivo secundário em Cibercultura e pós-humanismo, mas de importância talvez maior do que os objetivos citados acima: situar a cibercultura como a nova face, como a evolução da indústria cultural. Trata-se de uma proposta interessante, na medida em que, entendendo a cibercultura como uma expressão agregadora dos fenômenos sociais surgidos em conjunto com as tecnologias digitais de comunicação e informação, abre uma janela para a aplicação do instrumental teórico e os métodos da Teoria Crítica à análise de manifestações do pensamento predominante na atualidade. Com efeito, para Rüdiger (p.27) “a prática da indústria cultural está se democratizando cada vez mais entre as massas: em essência, não é senão isso que subjaz ao falatório em torno da interatividade trazida ou possibilitada pelas novas tecnologias de comunicação”. Cibercultura e pós-humanismo tem o grande mérito de reafirmar as idéias de pensadores como Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse num momento em que todos os acreditam ultrapassados.

Marcelo Träsel: Jornalista, mestre em Comunicação e Informação pelo PPGCOM/UFRGS, doutorando em Comunicação pelo PPGCOM/PUCRS, professor de Comunicação Digital na PUCRS.