doi: 10.4013/ver.2009.23.52.08

O romantismo tardio: amor e indústria cultural
Late romanticism: love and the culture industry

Francisco Rüdiger
frudiger@ig.com.br

Resumo. Discute-se no artigo se o romantismo amoroso, conforme se definiu historicamente, pode ser reduzido a mecanismo de exploração da indústria cultural ou estratégia de distinção cultural por parte das classes dominantes, conforme preconizado por intérpretes como Eva Illouz e Pierre Bourdieu. Advoga-se que estas forças, embora presentes na formação do fenômeno, não o esgotam, de modo que à análise de suas manifestações, em meio às culturas da mídia, cumpre levar em conta, também, os momentos em que ele se revela professo formador de mundo social autônomo, ainda que marcado por acento utópico.

Abstract. We discuss in the article if the romantic love, according to its historical definition, may be reduced to a culture industry mechanism or a social strategy of cultural distinction, as Eva Illouz and Pierre Bourdieu, respectively, have argued. For us, those features, notwithstanding its presence inside the phenomenon, do not exhaust it and, because of that, we are always examining it as a media culture fact. We also have to considerer the moments in which it reveals itself as an autonomous social world making process.

Surgido há cerca de 200 anos atrás, o romantismo é um fenômeno histórico moderno, um movimento de sentido social utópico, cujos sinais marcaram e ainda se fazem sentir em várias esferas de nosso mundo. A política e a arte são apenas dois dos eixos em que não foi pequena sua influência. Os costumes e a moral, por outro lado, revelam que essa também alcançou a vida cotidiana, impactando de forma muito notável, por exemplo, no campo do amor, das relações afetivas entre os seres humanos, entre homens e mulheres.

Georges Gusdorf nos ajuda a situar o tema em sua grande obra sobre o movimento, observando, relativamente a este ponto, que:

Os românticos fizeram da experiência amorosa uma de suas preocupações, ao contrário dos filósofos tradicionais, que se contentavam em se desviar desse tópico mal afamado, esta terra mal conhecida, que parecia resistir às suas reduções conceituais. O movimento rompeu com a divisão do trabalho que abandonara esse campo à planície das obras poéticas e literárias e, assim, reduzira sua significação [para o pensamento] (1984, p. 224).

Quando se trata de examinar a fortuna do romantismo como prática do amor profano, tarefa essencial consiste em chamar atenção para algumas formas e situações que procederam à sua mediação mais massiva durante o último século. A proposta pode parecer leviana ou supérflua, à primeira vista, considerando-se a maneira como o tema que lhe é subjacente, o amor, tem sido tratado pela reflexão mais séria, desde sua origem.

George Simmel, que, entre os pensadores a abordar o tema, foi um dos maiores, notou que, “talvez, a mais negligenciada de todas as grandes questões vitais tratadas pela filosofia seja o amor, como se esse fosse um tema incidental, uma simples aventura primária da alma, sem nenhum valor para a seriedade e o rigor objetivo dos empreendimentos filosóficos” (1971, p. 235).

Para ele, ao contrário, porém, é bem isso que se trata, quando nossa referência à história não esquece sua dimensão cotidiana, sempre que a reflexão mais séria não ignora que seu sentido último, o da reflexão, é o discernimento do bem viver no mundo. Portanto, “surpreende que um assunto que representa um papel tão importante na vida humana tenha sido, até agora, tão negligenciado pelos filósofos e ainda se apresente como matéria nova”, conforme disse Schopenhauer (1993, p. 43).

Levando em conta essas observações, cremos ser legítimo fazer uma reflexão histórica e filosófica sobre a fortuna do romantismo, entendido como prática do amor puro, em meio à era da indústria cultural planetária. O relacionamento romântico é um fenômeno aparentemente simples que, visto mais de perto, revela-se extremamente problemático ao entendimento histórico e filosófico, para não falar do que já o é em sua vivência cotidiana.

Com efeito, o esclarecimento crítico e reflexivo do mesmo esbarra na sua resistência à definição categorial, inclusive partindo do ponto de vista histórico. O romantismo amoroso possui tantas feições quantas têm sua matriz mais ampla e, por isso, como no caso desta última, é mais fácil apontá-lo do que lhe dar um conceito, com um agravante: as concepções mais amplas que se usa para entender o romantismo em geral não lhe cabem bem.

Para alguns autores, o romantismo foi ou ainda é um movimento político, estético e social dos tempos modernos, cujos motivos se opõem aos do seu racionalismo (Lefebvre, 1969, p. 277-374; cf., mais amplamente, Gusdorff, 1984). Para outros, seria visto melhor como uma atitude ética e filosófica, que permeia várias esferas da vida social e que, encontrando-se aqui eco da visão daqueles primeiros, caracteriza-se pela resistência às feições tecnicistas da modernidade (Taylor, 1989, p. 368-393; cf., mais amplamente, Löwy & Sayre, 1995).

O romantismo amoroso não se encaixa bem em nenhuma dessas alternativas, ainda que elas não lhe sejam totalmente estranhas. As circunstâncias mais amplas vincularam-no ao cultivo dos afetos, à promoção da sensibilidade e à procura de gratificação emocional como princípios de sociabilidade (cf. Campbell, 1987). Os fundamentos individualistas nos quais se assenta e a ambigüidade de significado ou valor que sempre o acompanharam, todavia, indicam que seu oposicionismo a nossa era é relativo e que, no entanto, apesar disso, seu processo de posição, ainda hoje, não é indisputável coletivamente.

O problema se complica quando procuramos entender mais a fundo seu fundamento ou referência: o amor.

Quem se propõe a definir o que é o amor, tanto quanto quem já julga sabê-lo, se torna prisioneiro de sua metafísica, porque, vale a pena notar, o amor não é uma coisa, mas a elaboração histórica de um certo tipo de relacionamento entre os seres humanos. Quanto mais se pretende falar do amor, maiores são os indícios de seu estatuto problemático, menores são as chances de defini-lo positivamente, apesar da intenção em contrário.

Segundo um pretendido especialista brasileiro no assunto, publicista multimídia de renome, por exemplo, “a única certeza que temos a respeito do assunto é a de que o amor é uma condição inerente ao ser humano”. O amor, afirma, é um fato que exala das pessoas, mas em última análise, “é algo inexplicável” (Shiniashiki, 1988, p. 32).

Alcunhado de “Dr. Love” (!), Leo Buscaglia teria, segundo seus leitores, devotado toda sua vida à causa do amor. Pode-se esperar, portanto, que tenha feito alguma descoberta conclusiva a seu respeito. Para ele, com efeito, o amor é a solução de todos os nossos problemas. Em última instância, o autor todavia concluiu que ele “não tem explicação”: “O amor é o amor” (Buscaglia, 1971, p.77), dizia ele vinte anos antes da tese ser repetida por Shiniashiki.

Recuando um século, encontramos a mesma conclusão noutro famoso propagandista do assunto, Henri Drummond. Segundo ele, sendo um dom supremo, “o amor jamais pode ser definido” ([1890] 1992). Diante disso, pode-se supor que haja razões internas e não apenas externas para os que pretendem falar sobre o amor concluírem, retornando ao final do século recém-findo, que esse se tornou uma mera palavra, “esvaziada dos sentidos anteriores” (Milan, 1983, 41).

Na verdade, acontece que a experiência amorosa fora das instituições (família, sobretudo), romântica ou não, sempre se confrontou com uma atitude ambígua por parte de seus contemporâneos, desde o ponto de vista dos observadores. Absolutamente não é de nosso tempo, da contemporaneidade, o fato de que ele é objeto de uma opinião ou juízo que, por um lado, faz dele algo desejado, esperado como bálsamo por uma população sonhadora, mas ao mesmo tempo o estigmatiza, fazendo dele algo que se fala com distância e desprezo debochado, por uma consciência que o desacredita e, assim, “expõe e isola o sujeito apaixonado” (Barthes, 1986, p. 157).

Convém pensar se parte da explicação para tanto não está no fato desse tipo de amor, exponenciado nos relacionamentos românticos, ser um bem muito raro e frágil que, ambiguamente, desperta ao mesmo tempo desejo, por seus prêmios, e desprezo, devido à sua grande inacessibilidade. Marina Colasanti não abordou o tema com atitude crítica, porém concluiu bem seus comentários sobre o tema, postulando que se entenda o amor menos como fato do que como um problema (Colasanti, 1984, p. 273).

Contrariamente ao propagado por tantos publicistas que têm abordado o assunto, o amor, sugere a autora, não seria nossa “solução”, mas um dos nossos grandes “problemas”, cujas saídas são várias, se é que, em relação a tal assunto, existem saídas. Vendo bem, acertar as equações que lhe subjazem é o que a espécie procura: isso explica porque o amor se tornou campo de interesse da literatura, da arte, da filosofia, da política, das ciências e, salientemos, do mercado.

Chegamos, contudo, a um estágio reflexivo avançado e, por isso, com a autora citada, podemos nos perguntar “se existe mesmo esse amor tão total, tão avassalador, tão completo [por tantos falado]?” Será que, na verdade, esse amor não é algo que nós inventamos arbitrariamente? Quem sabe não acabamos “instituindo a exceção como regra”, ao falar e pensar sobre o amor? (p. 25)

Conforme tomamos plena consciência na atualidade, assim como as relações entre as pessoas podem ser predominantemente instrumentais, também podem sê-lo em sentido afetivo e estético, embora jamais se encontre casos puros, tanto de umas quanto de outras, fora da abstração. No limite, portanto, os processos que subjazem aos relacionamentos humanos podem ser estruturados de modo a privilegiar esses últimos aspectos, os afetivos, por exemplo. O romantismo amoroso, fenômeno moderno, cremos, é um sinal negativo do aparecimento desse tipo de relação na vida mundana ou, pelo menos, de sua conversão em motivo de preocupação por parte das instituições estabelecidas.

O subjetivismo das relações afetivas costumava ser prevenido pela forma como essas se estruturavam nas formações históricas que precederam ao aparecimento dos tempos modernos, inclusive na comunidade doméstica tradicional. O progresso do individualismo fomentado pela expansão das relações de mercado, todavia, abriu espaço para o avanço do amor livre e, por essa via, para o surgimento de movimentos interessados em sua legitimação institucional.

O romantismo pode ser visto, por isso, como uma emanação comunal e afetiva do individualismo egoísta e racional que emerge com a modernidade. Os elementos morais (coletivos) são, nele, virtualmente inexistentes, impedindo-nos de o caracterizar como uma contra-reação ao individualismo. O sentido de procura e entrega recíproca ao outro que se detecta em suas expressões, todavia, contraria as tendências egoístas que esse possui numa dimensão virtualmente muito mais sólida do que pretendem as idéias utilitaristas, formadoras da primeira doutrina moral do capitalismo.

Conforme o individualismo avança e faz pipocar uma série de novos conflitos cotidianos, vão surgindo propostas de solução para suas antinomias, fórmulas mais ou menos efetivas de compensar ou tentar minimizar seus prejuízos com algum princípio de intersubjetividade. O mercado em que aquele se articula substitui a comunidade e a família como mecanismo de satisfação das necessidades, minando as bases sociais objetivas para a prática da solidariedade. O resultado é uma virtual luta de todos contra todos, mantida latente menos pelo cálculo racional que lhe fornece instituições reguladoras do que pela correlação de forças subjacente às atividades societárias.

Por outro lado, convém lembrar que esse processo não marcha de forma linear e sem conflitos com outras formas de entendimento prático e espiritual do que vem e deve ser a vida em coletividade. O comunitarismo cristão, o movimento socialista, o personalismo, o totalitarismo e outros fenômenos assemelhados nos fornecem provas de que não têm faltado alternativas e contrapesos ao contratualismo (político e jurídico) aparecido no final do século XVII.

As reações daqueles que não se conformam com seu enquadramento na modernidade, todavia, não se resumem nos projetos de criação de instituições coletivistas fundadas moral ou politicamente, como essas: o fenômeno inclui ainda as de cunho afetivo, como nos dá prova, por exemplo, a utopia compósita do falanstério fourierista tanto quanto a da aventura amorosa românica (cf. ainda Mounier [1949], Sorokin [1954], Fromm [1956], Buscaglia [1971]).

De fato, cremos que não está errado ver no romantismo amoroso uma formação de compromisso entre essas tendências e os impulsos no sentido do individualismo, muito mais do que, como alguns defendem, uma simples emanação cotidiana, para as camadas médias afluentes, da estética da mercadoria que o capitalismo impôs com o passar do século XX.

José Luiz Furtado, apesar de nem sempre coerente em sua obra sobre o assunto, está correto, embora não de todo, cremos, em dizer que “o amor é um mistério abissal”, porque, sempre que é tal, ele “transcende a capacidade de explicação racional, seja reduzindo-o a um fenômeno do ciclo da vida instintiva, a um comportamento naturalmente programado, seja fazendo-o repousar sobre a capacidade e liberdade de escolha” (2008, p. 109).

Por isso, o romantismo amoroso poderia ser bem definido pela procura de uma espécie de comunhão individualista chancelada pela irracionalidade, a sublimação afetiva e a fantasia mais pura do contrato livremente assinado, juridicamente perfeito e igualmente recompensador materialmente para as partes signatárias. Do ponto de vista imanente, o sentido utópico do romantismo não exclui, mas predomina sobre o ideológico, ao contrário do que pode fazer a importante pesquisa sobre o assunto feita por Eva Illouz.

Segundo essa autora e outras (por exemplo, Boden, 2003), o romantismo foi um dos motivos oriundos da era burguesa apropriado pelo movimento da indústria cultural em seu processo de formação, nas primeiras décadas do século XX. Nessa época, o fenômeno transitou de sua fase embrionária, espiritualista e patriarcal, para a da maturidade, individual e hedonista, via sua exploração mercadológica. “O consumismo conferiu significados e prazeres congruentes, em vez de antitéticos à fenomenologia do amor romântico” (Illouz, 1997, p. 113).

O capitalismo avançado inseriu o romantismo no campo da economia, relacionando-o com o poder sedutor dos bens de consumo. A progressiva mercantilização das formas de auto-expressão individual ligou-o às empresas interessadas na exploração do lazer e cultura. Os costumes burgueses mais tradicionais foram sendo deixados para trás, na medida em que o comércio se vinculou à idéia de romance como fórmula de um novo estilo de vida.

Entre 1900 e 1940, a publicidade e o cinema, as emergentes e poderosas indústrias culturais da época, criaram e promoveram a visão do amor como uma utopia na qual o casamento seria eternamente excitante e romântico, se o casal participasse das atividades de lazer [mercantil] (p. 41).

Depois da I Guerra, as convenções que regulavam o conhecimento e o relacionamento entre os sexos foram passando do registro comunal, religioso e familiar, para o mercantil, hedonista e individual. O foco nos hábitos familiares saiu de cena e em seu lugar começou a se promover os hábitos de lazer e diversão. As suspeitas e restrições à conduta romântica foram sendo postas de lado, em favor de outras, que a embalaram, tais como a busca de prazer imediato e o prazer pela aventura de cunho consumista. O ponto extremo foi chegando quando, em tempos mais recentes, se passou a sugerir “que o romance conjugal só poderia se mantido eternamente se ele recorresse às mercadorias apropriadas” (p. 40)

Durante o período anterior, os relacionamentos estavam sujeitos a forças tradicionais, como o patriarcado e a política de alianças familiares. O romantismo era evitado, por ser fonte de dores e sofrimento. As pessoas estavam de acordo que o amor puro não era base suficiente para um relacionamento legítimo. Conforme o capitalismo se impôs mais amplamente, acabou, contudo, a visão matrimonial e espiritualizada do amor que a burguesia confeccionara. A emancipação trazida pela expansão das relações de mercado liberou os relacionamentos das amarras tradicionais e, assim, criou terreno para a promoção do romantismo. O preço pago por tanto, porém, foi a subsunção do amor aos regramentos mercantis, um fato que tornou o romantismo uma correia de agenciamento material do consumo e subordinação ideológica das massas ao capitalismo.

O caráter ao mesmo tempo extraordinário e mercantil do romantismo em relação ao cotidiano não apenas acentua essa subordinação como acirra as contradições e antagonismos entre as camadas subalternas, condenadas, por meio dele, não só a desejar um estilo de vida que elas não têm como vivenciar, mas a articular suas emoções recíprocas de acordo com um modelo que , em vez de enriquecer sua vida, rebaixa moralmente suas experiências e, no limite, pode promover condutas e atitudes regressivas.

[No tocante ao romantismo] as esferas da vida privada e da troca mercantil se conectam de formas diversas para as classes médias e a classe trabalhadora. O romance é um bem desigualmente distribuído em nossa estrutura social. O amor fornece liberdade pessoal apenas àqueles que já possuem alguma liberdade no lugar de trabalho (p. 294).

Por isso tudo, crê a autora, o romantismo não é uma categoria utópica, que articula valores alternativos ao capitalismo, sendo antes um fenômeno ideológico, que serve e reproduz de forma ampliada e contraditória os mecanismos e interesses do sistema capitalista.

O principal, aqui, não é contestar a vasta análise empreendida pela autora, mas convém chamar atenção para o fato de que, se é válido não tomar o amor pelo seu valor de face, apontando, pois, para sua dimensão ideológica, por outro lado se deveria evitar o entendimento do romantismo por esse único aspecto.

Eva Illouz revela bem como o capitalismo promove a convergência entre romance e negócio, porém nos parece equívoco reduzir um ao outro. A pretensão de que o primeiro é função do segundo é menos crítica do que ideológica, um reflexo da imposição do sistema inclusive na consciência reflexiva mais crítica e emancipatória. O romantismo se desenvolveu de maneira entrelaçada à indústria cultural, porque o próprio dessa última virtualmente abrange toda a vida no capitalismo avançado, mas não coincide integralmente com suas circunstâncias, por ter sua fonte última nas nossas intensidades singulares.

Vendo melhor, o romantismo é menos uma “competência” social estruturada pelo sujeito da indústria, como defende a pesquisadora (p. 286), do que uma “performance” que, embora estruturada por aquela, é criadora de um estado de exceção em seu mundo histórico. O relacionamento indicado pelo termo, embora propagandeado como bem de consumo de massas, realmente é um evento extraordinário no âmbito do sistema, qualquer que seja o grupo ou classe social. A consciência se forma em meio ao sistema marcado simultaneamente pelo antagonismo e o ofuscamento e, por isso, de alguma maneira, mesmo que dolorosa, vai aprendendo a distinguir entre a publicidade e a experiência, entre o autêntico e o descartável.

Significa que se, por um lado, como experiência articulada pela mercadoria, o romantismo serve de embreagem ideológica da cultura de consumo, ele, por outro lado, como fato extraordinário, representa menos uma utopia do que seu sinal objetivo em meio ao seu violento individualismo. Portanto, embora acertado sob um ponto de vista, o exame do problema feito pela autora precisa ser evitado em termos absolutos ou reducionistas, para não se cair na reificação mercantil do amor que o próprio sistema tende a promover em nossa consciência.

O romantismo consumista, estruturado pela indústria cultural, pode e deve ser distinguido conceitualmente, por mais confundido ou misturado que esteja na realidade, da prática do amor puro, improvável e extraordinária socialmente. Apesar de tremendamente frágil e de só raramente o encontrarmos, o verdadeiro amor, ainda que vivido em meio ao sistema, existe como fato metafísico em escala o suficiente para postularmos sua legalidade autônoma, como concluiu em seus escritos tardios um dos mais ferrenhos defensores do determinismo sociológico de período recente, Pierre Bourdieu.

Conforme este observa, a experiência de exceção que o romance representa compreende um ponto de vista antropológico, em que se suspende a luta pelo poder simbólico (e a reificação mercantil, acrescentaríamos), engendrando um processo de reconhecimento que:

pode levar, em sua perfeita reflexividade, para além das alternativas do egoísmo e do altruísmo, ou até da distinção entre sujeito e objeto, a um estado de fusão e de comunhão, muitas vezes evocado em metáforas próximas às do místico, em que dois seres podem ‘perder-se um no outro’ sem se perder [como indivíduos] (Bourdieu, 1999, p. 132).

Apenas quem, concretamente, se privou ou foi privado dessa experiência, sempre rara e singular, julgaria que se encontra aí uma proposição propagandística da distinção ou uma emanação teórica da cultura de consumo, por mais que a fórmula possa e seja explorada com finalidades publicitárias pela indústria cultural. A observação do sociólogo acusa o que podemos chamar de amor puro, um processo instituinte excepcional, em que os partícipes mudam de estatuto ontológico, por mais que o corte com o cotidiano seja limitado, precário, provisório e revogável, e cujos critérios, sendo vividos e singulares, só podem ser admitidos pela análise social que, embora atenta e crítica para sua exploração mistificadora, não exclui ou invalida a propriedade dessa dimensão da existência histórica.

Quem diria, Pierre Bourdieu, sociólogo crítico formado objetivista, converge com Francesco Alberoni, o fenomenólogo reflexivo do enamoramento irracional, notando que, “somente com um trabalho de todos os instantes, sem cessar recomeçado, o amor pode ser arrancada das águas frias do cálculo, da violência e do interesse”. Extraordinário e sempre sujeito à trapaça em meio às relações de poder vigentes, o romance ou amor puro é “este mundo fechado e totalmente autárquico, em que se dá toda uma série contínua de milagres”, em especial o milagre ou felicidade de se fazer feliz, “quando nós encontramos no encantamento do outro, sobretudo no encantamento que ele suscita, razões inesgotáveis para ficarmos maravilhados” (op. cit., p. 130-131).

Contra esse juízo, o crítico inflexível, mas equivocado, insistirá que o romance puro assim apontado, senão um artifício retórico de hegemonia, é apenas uma estratégia de distinção social dos setores afluentes, como teria feito, aliás, anos antes, o próprio Bourdieu. Desde esse ponto de vista, sabe-se, as práticas sociais são sempre função de relações de poder: seu sentido imediato é sempre um epifenômeno de um sistema de dominação mais abrangente. Portanto, o romantismo seria tão somente mais um bem discricionário, cujo real sentido seria manter uma hierarquia social, mascarando-a de diferença entre os felizes e os infelizes no amor.

O ponto de vista nos parece justo, desde que a hipótese não postule, como já argüimos, a necessidade da proposição, desde que ela não mecanize o entendimento do processo. O amor romântico, sim, pode se prestar não somente a esse tipo de estratégia e princípio de construção de hegemonia mas, sobretudo, como dito, à exploração do fetichismo da mercadoria no âmbito de uma indústria cultural convertida cada vez mais plenamente em sistema. A prática do relacionamento romântico, não se pode ser ingênuo, está sempre mesclada com outras formas de conduta e registros de significação, de modo que um ou outro acento, como os apontados, pode sempre estar presente em seu desenvolvimento.

O principal a notar, porém, é que, nesse caso, o romantismo já está sendo corrompido pelo que, todavia, não é ele mesmo, sendo apenas uma de suas circunstâncias. O amor puro é uma abstração criada com o processo histórico, mas por isso mesmo algo que, na realidade, jamais se encontra posto puramente como tal, e sim mesclado a outras relações do ponto de vista da existência. O crítico só é dialético, portanto, se o logra estudar com esta aporia em vista: isto é, conservando suas reservas sobre as chances de se fazer o bem e ser romântico em meio a um sistema que fomenta a perversão e o antagonismo nas relações entre suas criaturas, sem renunciar a enxergar os sinais de algo melhor ou mais promissor, a prática do amor puro, por exemplo, no interior do seu movimento.

A despeito de seu eventual conteúdo de verdade, as condenações e reservas tantas vezes feitas contra o romantismo, após uma época em que chegou mesmo a ser censurado, são indicações de que a espécie de comunhão para a qual o termo aponta, do ponto de vista coletivo, precisa ser vista, sobretudo, como utopia em meio à nossa sociedade. O romantismo é um fenômeno calçado em motivos irracionais, cuja legitimidade, para não falarmos de sua falta de necessidade, é e, provavelmente, será sempre disputada em meio a uma época dominada pelo cálculo racional.

Os crentes nessa idéia são tantos quanto os que a desacreditam, e ambos são em número menor das pessoas que dela desconfiam, de modo que não é no registro da ideologia que se estabeleceria o principal de sua experiência, por mais que ele, o romance, se concretize todos os dias, de maneira precária, mas significativa, desde muitas décadas: em última análise, seu sentido dominante é contrafactual e, portanto, utópico.

Com isso, estamos postulando que o romantismo amoroso seria visto melhor, sobretudo, como uma problemática da vida cotidiana em meio ao individualismo propagado com o avanço dos tempos modernos. O processo histórico conduziu ambos, cotidiano e individualismo, portanto: a problemática do romantismo, para o âmbito da economia de mercado universal, isto é: para o âmbito da indústria cultural.

Desde então, conclui-se, esta é sua mediação reflexiva e estética massiva, a principal forma como ele é articulado para parcela significativa destes sujeitos sociais que, acossados pelo racionalismo do tempo presente, procuram abrigo em um mundo onde, em tese, imperam as leis do coração.

1Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. O presente texto é parte de volume ainda a ser publicado, intitulado “Problemas de legitimação do romantismo tardio: amor e paixão na era da indústria cultural”. E-mail: frudiger@ig.com.br

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Submetido: 10/03/2009, aceito: 21/03/2009