doi: 10.4013/ver.2009.23.52.04

A leitura ativa no Jornalismo Online: ambientes de interação hipertextual e os processos de organização da participação jornalística
The active reading in Online Journalism: hypertextual interaction environments and the organization processes of journalistic participation

Laura Strelow Storch
lsstorch@gmail.com

Resumo. O presente trabalho busca discutir a participação no webjornalismo a partir da análise da influência da linguagem hipertextual na estruturação dos ambientes conversacionais em sites jornalísticos. Partindo de uma dupla visão sobre o hipertexto, como uma linguagem e como um código, busca-se propor uma distinção entre os diversos ambientes participativos, no webjornalismo institucionalizado, que leve em conta os níveis de poder-agir dos interagentes a partir do referencial hipertextual. Categorias como “leitor labiríntico”, “leitor escritor” e “leitor editor” emergem como uma perspectiva de análise que leve em conta as possibilidades e limites de ação dos interagentes em diferentes ambientes hipertextuais de participação jornalística.

Abstract. This paper discusses the participation in webjornalism from the analysis of the influence of hypertextual language in structuring conversational environments in journalism sites. Starting with a double vision of the hypertext as a language and a code, try to propose a distinction between the different environments involved in institutionalized webjornalism, which takes into account the levels of interagents power-act from the hypertextual references. Categories such as "labyrinthic reader", "writer reader" and "editing reader" emerge as a perspective of analysis that takes into account the possibilities and limits of action of interagents in different hipertextuals environments of journalism participation.

Introdução

O desenvolvimento de ferramentas de participação e colaboração em diversos ambientes da Web tem modificado as formas de circulação de informações e, mesmo, os modelos de comunicação. O jornalismo desenvolvido na Rede, pertencente à mesma estrutura de linguagem – o hipertexto, também sofre modificações, passando a oferecer aos leitores oportunidades de participação, debate e colaboração que, aliadas à crescente mobilidade das tecnologias de registro de conteúdos (câmeras, celulares, editores), têm transformado a rotina de profissionais e de organizações que buscam manter seu espaço na grande Rede.

A participação no webjornalismo

Durante as primeiras fases de desenvolvimento do jornalismo na Rede, com a rápida evolução de ferramentas que facilitavam o acesso e a publicação de conteúdos no ambiente online, muitas previsões garantiam ao jornalismo uma revolução. Quandt salienta que esses prognósticos se sustentavam em uma lógica simples, a de que as “opções tecnológicas são muitas vezes diretamente difundidas para os usos sociais da vida real – sem levar em conta que as instituições sociais midiáticas existem em contextos complexos”2 (2008, p.77).

Assim, enquanto as características da Rede3 – como interatividade, multimidialidade, convergência, memória, hipertextualidade, entre outros – serviam de subsídios para a elaboração de conceitos para o exercício deste “novo jornalismo”, a prática cotidiana das redações online acabou por minar grande parte das expectativas dos entusiastas, rendendo-se às pressões do dia-a-dia dos jornalistas, às dificuldades com a inserção das rendas publicitárias neste novo tipo de nicho, e, até mesmo, à falta de incentivo dos profissionais jornalistas com as drásticas mudanças na forma de se fazer notícias.

Obviamente as características centrais da Rede estão presentes nas páginas dos webjornais, seja através de links, de comentários, dos arquivos de notícias, da disponibilização de material áudio-visual, mas a elaboração de novos modelos de jornalismo a partir destas potencialidades não é uma realidade facilmente identificável em grande parte dos estudos etnográficos, em redações online, em diferentes partes do mundo (Paterson e Domingo, 2008).

Ainda assim, o processo de amadurecimento e, especialmente, de desenvolvimento técnico-conceitual do jornalismo online não pode ser considerado encerrado. Ao contrário, cada vez mais os modelos de comunicação online são influenciados, ao menos tecnicamente, por ferramentas e atitudes dos usuários da Web. Esse é caso, por exemplo, da noção de participação.

Com o surgimento de ferramentas dinâmicas de publicação de conteúdos e a popularização de blogs e sites no estilo “jornalismo cidadão” como fonte de informação, cada vez mais a participação e o debate aberto de idéias e pontos de vista são valorizados nos diversos ambientes online. Nesse sentido, também os webjornais4 passam a agregar em suas editorias ou em ambientes específicos destinados a esses fins, ferramentas que convidam o leitor a participar, debater, colaborar e, até mesmo, produzir conteúdos e noticias.

Entre os mais comuns estão, ainda, os contatos por e-mail ou formulários, disponibilizados em cada matéria, por editorias ou mesmo individualmente, de cada jornalista, ou colunista, que assina o conteúdo. Além destes, a partir do desenvolvimento de recursos hipertextuais de colaboração, passamos a visualizar, nos webjornais institucionalizados, ferramentas de comentários acessíveis em todas as matérias, recursos de fóruns – que permitem o debate de temas mais amplos, possibilidades de personalização no acesso dos conteúdos e até mesmo do corpo dos portais ou sites, e, mesmo, ferramentas que permitem ao leitor o envio de textos, imagens, vídeos e áudios noticiosos, ou informativos, que podem ser divulgados pelo webjornal, como matérias convencionais elaboradas por “colaboradores”, entre outros.

A adição [em webjornais institucionalizados] de elementos do estilo blog (como funções de comentário e discussão) [...] geralmente buscam conservar uma atitude condescendente frente à sua audiência ou deixam de responder a ela completamente; na verdade, essas ferramentas servem unicamente para salientar o crescente distanciamento entre o profissionalismo e a opinião pública5 (Bruns, 2008, p.180).

A inserção de mecanismos e ferramentas de participação do leitor nos webjornais pode não visar uma adaptação a um novo modelo de comunicação, nem mesmo destacar iniciativas de colaboração entre profissionais e leitores (ou “jornalistas amadores”). Da mesma forma, a participação do leitor nesses espaços não significa que haja um compartilhamento na atividade jornalística. Ainda assim, eles representam uma importante alteração na rotina de tratamento do leitor por parte das empresas de comunicação e, também, por parte dos jornalistas.

O tipo de participação que se desenvolve, enfim, nesses ambientes deve ser analisado levando-se em conta algumas perspectivas centrais: a primeira delas, o aspecto empresarial da produção editorial institucionalizada, que modifica as relações entre as diferentes instâncias envolvidas no processo (jornal, jornalista, leitor); além disso, é importante considerar os aspectos técnicos, ligados as estruturas hipertextuais de código que possibilitam tais contatos relacionais. Neste sentido, torna-se cada vez mais importante a discussão sobre as formas hipertextuais e as relações entre “usuários”6 e profissionais, entendidos como interagentes em um processo conversacional.

Buscaremos desenvolver, ainda que brevemente, a intensa relação existente entre esses dois conceitos centrais para a discussão da participação em ambientes jornalísticos virtuais, e ambientes Web de forma geral: a hipertextualidade e a interação mediada por computador.

Interação Mediada e Hipertextualidade

O surgimento da Web, um sistema de interconexões hipermídia, permitiu o desenvolvimento de uma nova linguagem, um formato de escrita capaz de congregar diferentes elementos lingüísticos tradicionais – como o texto, o som e a imagem, por exemplo – mas também elementos hipertextuais, gerados no interior da Rede, como os links (seu núcleo básico na Web). Xavier nos ajuda a pensar esse fenômeno sugerindo que o hipertexto7 é “uma forma híbrida, dinâmica e flexível de linguagem que dialoga com outras interfaces semióticas, adiciona e acondiciona à superfície formas outras de textualidade” (2005, p. 171).

Além de linguagem, podemos entender o hipertexto sob uma perspectiva mais técnica8: como um sistema de organização de informações digitais, um sistema de marcação, que permite a formatação de diferentes tipos de conteúdos e dados na Web. Assim, o hipertexto é tanto texto quanto código, ou seja,

Com computadores, escrever, que sempre fora físico, agora se torna uma questão de códigos – códigos que podem ser modificados, manipulados, e movidos de formas completamente novas. “Altere o código, altere o texto” passa a ser a regra da qual derivam as vantagens do chamado processamento de textos9 (Landow, 2006, p. 89-90).

A noção de uma linguagem codificada nos remete ao sentido de que, antes de tudo, o suporte e o modelo de transmissão de informações exigiram uma mudança de linguagem que, associada à sua organização na tela e aos requisitos específicos exigidos para sua leitura, formam os basilares para uma revolução do texto e das maneiras de ler que, segundo Chartier (2002), nunca antes teriam ocorrido.

Assim, os debates acerca das práticas discursivas na Rede, em especial as modificações que o suporte eletrônico impõe nos processos de escrita e leitura, têm salientado pontos fundamentais de alteração ou mesmo ruptura de ordens até então estabelecidas. Entre elas, podemos destacar questões como a propriedade intelectual das obras online, a colaboração e a autoria, entre outros. Chartier nos propõe pensar que tipos de mudanças a escrita hipertextual provoca nos processos de negociação entre autores e leitores:

[...] o leitor não é mais obrigado a atribuir a sua confiança ao autor; pode, por sua vez, por gosto ou por lazer, refazer a totalidade ou parte do percurso da investigação. Há uma mutação epistemológica fundamental que transforma profundamente as técnicas de prova e as modalidades de construção e validação dos discursos do saber (2007, p.206).

Essa característica do hipertexto na Web, a possibilidade de uma leitura não-linear, despida de hierarquizações pré-estabelecidas, permite ao navegador da Rede não apenas refazer o caminho do autor do texto, mas, também, seguir sua própria estrutura de leitura por entre os links, elaborando um outro universo de significação e desta forma participando concretamente do processo de construção do discurso.

Para além disso, não só é possível elaborar um conteúdo sem começo ou fim – onde estas categorias dependem unicamente do circuito definido pelo leitor, quanto é possível elaborar conteúdos passíveis de intervenção por parte do leitor, que pode modificá-lo, ou seja, o leitor também é capaz de modificar os códigos e, com isso, o texto. Ele é capaz de responder ao autor, propor mudanças ou mesmo efetuá-las sem a necessária autorização daquele, no espaço mesmo do texto ou em outro, de seu domínio, através de hiperligações.

Nessa perspectiva, a escrita hipertextual marca o ponto de materialização das possibilidades de escrita em conjunto. Obviamente, esse conceito não nasce neste momento. Acompanha, por exemplo, os estudos bakhtineanos sobre a dialogia do discurso10; também surge em Foucault11, quando o autor problematiza exatamente a questão da autoria e propõe atenção especial ao conceito de “dispersão dos sujeitos”. Mas é com a iminência das redes globais de informação que estas configurações teóricas ganham expressividade material, são representadas nas ações ‘físicas’ dos indivíduos através de inserções hipertextuais relacionadas e reconfiguradas em um “mesmo espaço e tempo”.

Qualquer material publicado na Rede e produzido para uma determinada finalidade pode, enfim, ser “re-escrito”, em uma nova textualidade, e dar forma a uma argumentação completamente diversa. Assim, um autor procura determinar suas marcas no texto, sugerindo estas e não aquelas palavras12 como elos (nós ou links) entre diferentes conteúdos, buscando identificar ao leitor o seu próprio caminho de construção do discurso. Ao mesmo tempo, por sua liberdade de navegação, cada leitor constrói sempre um novo percurso de leitura, correspondendo às associações que é capaz de formular com o conteúdo do discurso. Nesse sentido, “o hipertexto é um texto de acessibilidade ilimitada, ou seja, não experimentaria qualquer tipo de censura quanto às ligações que permite estabelecer” (Melo, 2005 p.135). A organização, em si, do hipertexto digital pressupõe essa não-linearidade e a liberdade de associação por parte do leitor.

De determinada forma, podemos entender que as conexões hipertextuais por links entre os diversos conteúdos da Rede buscam elaborar uma constituição corporal do discurso, organizar a circulação dos conteúdos. Ainda assim, muitos são os limites para a realização plena dessa perspectiva. Um deles é o de que, por mais links que um texto seja capaz de congregar, não necessariamente irá configurar-se em um discurso polifônico13. A linguagem hipertextual tem desenvolvido cada vez mais suas capacidades de produção coletiva, mas não é a existência dos conteúdos e das ferramentas que permite a real democratização do hipertexto, e sim a capacidade coletiva de participação aberta.

[...] considerando que a leitura multidirecional confere maiores poderes àqueles que navegam pelo documento digital, é preciso lembrar que o programador do hipertexto ainda mantinha consigo [no hipertexto de segunda geração] o poder da escrita [...]. De fato, ele [o leitor] poderia decidir quais links gostaria de seguir, mas não se pode deixar de apontar que esses apontadores foram pré-determinados por um programador, que decide ele mesmo quais caminhos alternativos seriam propostos na página (Primo e Recuero, 2006, p.84).

No mesmo artigo, Primo e Recuero (2006) propõem uma divisão entre três diferentes gerações de hipertexto: a primeira delas vinculada ainda ao impresso, às marcas textuais, como notas de rodapé; a segunda geração teria se organizado a partir do surgimento das tecnologias informáticas e abarcaria o contexto dos links tradicionais. Os autores sugerem que uma terceira geração hipertextual estaria se organizando a partir da tendência à abertura à participação coletiva14, à colaboração.

Essa perspectiva propõe uma nova alteração na relação do binômio escrita/leitura no universo virtual – a possibilidade de escrita em conjunto, contando com a colaboração de diversos co-autores, capazes de interferir no texto principal (de diferentes formas) e redefinir sua organização discursiva.

Assim, a escrita coletiva realizada através da hipertextualidade tanto acontece no caso dos chats, onde a simbiose de elementos textuais e hipertextuais se elabora em uma seqüência ao mesmo tempo organizada e caótica de troca de informações, quanto em conversações orientadas por ferramentas de comentários, como em weblogs, onde os leitores interferem no texto, muitas vezes modificando o conteúdo original do enunciado, e também no complexo sistema de intervenção que ocorre em ferramentas wiki15, ou colaborativas.

Primo e Recuero (2003) ainda nos propõem uma interessante reflexão sobre essa organização da escrita através do hipertexto. Para os autores, haveria diferenças entre Hipertexto Potencial, Hipertexto Cooperativo e Hipertexto Colagem. No primeiro caso, “os caminhos e movimentos possíveis do internauta se encontram previstos” (2003, p.55), de forma que é o internauta que se modifica, mas o conteúdo hipertextual se mantém original em sua redação. No caso do Hipertexto Colagem, mesmo sendo um processo de escrita coletiva, “demanda mais um trabalho de administração e reunião das partes criadas em separado do que um processo de debate e invenção cooperada” (2003, p.55). Esse é o tipo de movimento hipertextual presente nos weblogs, construídos através das ferramentas de comentários.

Já o Hipertexto Cooperativo, vinculado ao sistema wiki, pressupõe que “todos os envolvidos compartilham a invenção do texto comum, à medida que exercem e recebem impacto do grupo, do relacionamento que constroem e do próprio produto criativo em andamento” (2003, p.55). Nesses casos, a intervenção de outros colaboradores sobre o texto principal se dá a partir das mesmas referências de acesso de um possível autor original, de forma que o resultado é, enfim, um texto com múltiplos autores – todos aqueles que em algum momento interferiram diretamente no conteúdo.

Assim, ao definir-se a linguagem hipertextual a partir dessa dupla perspectiva, código e texto, e relacioná-la a perspectiva de evolução do hipertexto digital, podemos considerar que a escrita coletiva, materializada na Rede através de ferramentas e processos complexos de negociação de sentido, é fonte não apenas para a organização de novas formas de enunciação, mas também de novas articulações com as informações. Todas essas movimentações de linguagem em torno de um novo suporte irão alterar, enfim, as formas de comunicabilidade entre os sujeitos, os interagentes.

Leitura ativa no webjornalismo, uma proposta

Com as alterações nos sistemas de informação e nos modelos de comunicação, produzidos pelo advento da linguagem hipertextual, alguns conceitos como o de leitura/leitor, escrita/escritor e autor sofrem desgastes ou passam por adequações a fim de contemplar as experiências reais do discurso no universo digital.

Em razão disso, e em face ao desenvolvimento da proposta a seguir, parece-nos pertinente recuperar a classificação, elaborada por Santaella (2004), sobre o perfil cognitivo do leitor no ciberespaço. Tomando como critério as habilidades sensoriais, perceptivas e cognitivas que estão envolvidas nos processos e no ato de ler, a autora identificou três tipos de leitor: o contemplativo, o movente e o virtual.

O leitor contemplativo representa a figura típica daquele que lê sozinho, em silêncio, e medita sobre o que está na sua frente. O leitor movente, “é o leitor do mundo em movimento, dinâmico, do mundo híbrido, de misturas sígnicas”. Neste caso, trata-se do leitor que é capaz de compreender os textos “das cidades que começam a surgir”, que lê as notícias enquanto se dirige para o trabalho e, ainda, lê os significados das imagens publicitárias, dos avisos públicos. Por último, o leitor virtual é aquele que surge com os novos ambientes de virtualidade e tem “na multimídia seu suporte e na hipermídia, sua linguagem” (Santaella, 2004, p. 14-32).

Ao analisarmos a tipologia da autora, e o caráter cognitivo da leitura, podemos concordar compartilhar com ela a concepção de que o processo de leitura continua sendo efetivamente realizado na virtualidade da Rede, e que os recursos hipertextuais e interacionais desse universo colocam novas exigências cognitivas para o leitor:

O leitor imersivo é obrigatoriamente mais livre na medida em que, sem a liberdade de escolha entre os nexos e sem a iniciativa de busca de direções e rotas, a leitura imersiva não se realiza. [É um tipo de leitor] que navega numa tela, programando leituras, num universo de signos evanescentes e eternamente disponíveis [...] um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multisequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre as palavras, imagens, documentação, música, vídeo etc (Santaella, 2004, p.33).

Ainda assim, o processo de leitura labiríntica, como descrito pela autora, não é, de forma alguma, a exaustão das possibilidades de navegação nos conteúdos “numerizados” do ciberespaço. Ao contrário, a hipertextualidade oferece aos processos de leitura e escrita rupturas sem precedentes, que envolvem mais do que diferentes direções e rotas de leitura.

A partir dessa concepção, levando em conta as discussões sobre a característica dialógica das interações mútuas, e entendendo a interação como a “ação entre’ os participantes do encontro (inter+ação)” (Primo, 2007, p.13), pode-se resgatar os movimentos de participação, colaboração e intervenção hipertextual em ambientes textuais na Web - realizados por quem interage ou, dito de outra forma, por interagentes.

Pensando a figura do interagente no processo de comunicação, tanto os movimentos de leitura labiríntica quanto de escrita hipertextual configuram-se, na verdade, em potenciais atividades de interação, mais do que recursos de simples leitura.

Isso nos leva a entender o leitor hipertextual como um interagente. Ele não apenas reage às definições do autor (aqui também entendido como um interagente) quando navega pelos links, mas, também, participa, colabora ativamente para a construção da interação quando se inscreve em relações mútuas, como nos comentários em um blog ou quando agrega informações em um determinado domínio, como em um jornal participativo, por exemplo.

Também se pode tensionar esse conceito, levando em conta o que se passa a chamar de “poder de interação”. Ao levarmos em conta que as plataformas e interfaces hipertextuais, elaboradas dinâmica ou estaticamente, são responsáveis pela uniformização – ao menos potencial – do acesso e, mesmo, das interações dos colaboradores na Web, não podemos negar que as diferenças impostas pelos programadores (e pelos autores, de um modo geral) nas rotinas de participação dos leitores/interagentes limitam essas interações mútuas em uma perspectiva de poder-agir.

Neste caso, o interagente só se configuraria a partir de uma perspectiva de seleção, de escolha, de manipulação dos conteúdos que se manifestasse completamente em seu poder (mesmo que coletivamente) – como no conceito de hipertexto cooperativo (Primo e Recuero, 2003), e que acontece em ferramentas wiki e nos jornais colaborativos. Nestes casos, diferentes colaboradores podem aplicar sobre os conteúdos publicados as mesmas potenciais intervenções, ou seja, se o suporte hipertextual do sistema de dados permite que um interagente do processo, com interesse e disposição pessoais, intervenha nos conteúdos através do acesso ao template16 de edição, ou mesmo que defina, por votações e seleções coletivas, o que será mantido ou modificado nas estruturas do ambiente de interação, esse sistema poderia ser entendido como uma plataforma onde os colaboradores possuem grande poder de interação.

Em contrapartida, nos casos dos blogs convencionais e dos webjornais de referência, por exemplo, esse tipo de perspectiva não se confirma: o leitor participa, ele conversa, dialogicamente até, mas ele não tem o poder-agir de definir o que é noticiado ou não, o que será capa da edição, o que é escrito ou que imagem é “blogada”17, etc. Ele apenas tem a possibilidade de continuar a construção do discurso através da narrativa, ou mesmo da hiper-narrativa, que configura o Hipertexto Colagem – considerado como uma importante forma de interação mútua, mas que não pressupõe a liberdade total de ação do leitor no espaço da interação.

Desta forma, faz-se necessária uma referência conceitual que seja capaz de lidar com essas particularidades das interações e das leituras em ambientes de webjornalismo. Uma possibilidade que nos parece pertinente para a este caso é o conceito de leitor-escritor, de Landow (2006). A referência aos leitores ativos se dá em uma perspectiva que antecede a noção do hipertexto digital:

Qualquer um que fizer uma revisão do curso de graduação saberá que Virgílio auto - conscientemente leu e reescreveu Homero, e que Dante leu e reescreveu tanto Homero quanto Virgílio, e Milton continuou a prática. Estes leitores ativos aparecem constantemente nos últimos dois séculos18 (Landow, 2006, p.06).

Esse processo de leitura ativa é a realização do conhecimento pelas modalidades de “redescoberta”, “reatualização” e “retorno”19, categorias pelas quais Foucault (1992) enquadra, na ordem dos discursos, a perspectiva do “autor” como uma “dispersão de sujeitos”, um imbricamento de diferentes ‘eus’, ou seja,

[...] o autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de um agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência (Foucault, 2004, p.26).

Assim, o leitor-escritor surge como uma categoria discursiva que permite interpretar o conhecimento como uma continuidade histórica, que leve em conta as complexidades da constituição autoral. Permite-nos, também, refletir sobre esses movimentos de colagem hipertextual que se elaboram em ambientes de interação mútua, onde os interagentes contam com baixo poder de interação.

Todas essas formas de leitura ativa se diferem das experiências de leitores hipertextuais em sistemas de leitura simples, cuja redação não assume a forma de adição de novos textos, mas de elaboração de uma ordem de leitura onde todos os escritores alteram os textos20 (Landow, 2006, p.09).

Do ponto de vista do discurso hipertextual no universo digital, esse conceito se inscreve, ainda, na materialização de suas historicidades, visto que as categorias de redescoberta, reatualização e retorno se tornam pressupostos materiais em um ambiente de recursividade comunicacional mútua. Se, em um texto impresso, que interpõe seu suporte como limitador da materialização da co-autoria imediata ou, ao menos, a torna subjetiva à leitura, no universo hipertextual essas características podem se tornar, efetivamente, as regras de manifestação autoral, visto que “o mundo da comunicação eletrônica é um mundo da superabundância textual cuja oferta ultrapassa a capacidade de apropriação dos leitores” (Chartier, 2002, p. 20) que, assim, buscam a ressignificação dos conteúdos fragmentados a partir de sua inscrição em rotas de navegação e hiperconexões.

Assim, poderíamos discutir as diferentes posições de poder-agir em ambientes de interação mútua na Web a partir de uma classificação conceitual que leve em conta as discussões que propomos até aqui, conectando a expressão “leitor” ao processo de leitura labiríntica, realizada através das seleções de rotas hipertextuais realizadas pelo leitor – que correspondem ao menor grau de poder-agir interacional; em um segundo nível, a expressão “leitor-escritor” passaria a descrever os processos de escrita através do hipertexto-colagem, em ambientes de relativo poder-agir interacional; e, por fim, a expressão “leitor-editor” sendo aplicada à ambientes com maior liberdade de poder-agir interacional – àquela pressuposta nos processos de escrita através do hipertexto cooperativo.

Assim, preservando a característica de interagentes a todos os envolvidos nos diferentes movimentos de participação, essa categorização facilita a descrição dos diferentes ambientes de interação oferecidos, por exemplo, pelos webjornais e permite a discussão sobre as formas de interação dos leitores-escritores em conteúdos noticiosos, a partir de sua liberdade de ação.

Considerações finais

Levando em conta as diferentes oportunidades de participação oferecidas aos leitores de webjonais, buscou-se, neste trabalho, desenvolver argumentos e considerações que permitissem a elaboração de uma classificação que levasse em conta as possibilidades e limites de ação dos interagentes em diferentes ambientes hipertextuais de participação jornalística.

As categorias de “leitor”, “leitor-escritor” e “leitor-editor”, associadas com as discussões sobre a linguagem hipertextual no universo digital e as formas de interação mediada por computador nos fornecem subsídios para avançar na discussão da participação coletiva no webjornalismo institucionalizado – tema amplamente debatido e, ao mesmo tempo, de tão complexa aplicação na prática jornalística.

1Jornalista, doutoranda pelo PPG em Comunicação e Informação da UFRGS. Principais interesses de pesquisa: interação, hipertextualidade e colaboração com ênfase no jornalismo digital.

2Tradução da autora: ...technological options are often directly extrapolated into real life social use – without taking into account that media as social institutions exist in complex contexts.

3A aplicação das funcionalidades e características da Rede como características do próprio jornalismo que seria praticado nesses ambientes pode ser encontrada em diversos trabalhos, como em Machado e Palácios (2003).

4Este trabalho opta por compartilhar com Mielniczuk (2003) as classificações sobre o jornalismo praticado na Rede. Desta forma, o termo “webjornalismo” é entendido como a terceira fase de desenvolvimento do Jornalismo Online, ou seja, aquela fase em que estão em evidência iniciativas empresariais e editoriais produzidas exclusivamente para a Internet, aquelas que passam a explorar de forma melhor as potencialidades oferecidas pela Rede.

5Tradução da autora: The attachment of blog-style elements (such as commenting and discussion functions) to online op-ed pundits mantain a generally condescending attitude toward their audience or fail to respond to them altogether; indeed, it only serves to highlight the growing detachment of the punditariat from overall public opinion.

6O termo usuário não se aplica com pertinência ao movimento conversacional que se estabelece, em diferentes níveis, na Web. Ainda assim, ele pode ser utilizado, de forma abrangente, para destacar ambientes controlados, como acontece, por exemplo, em sites que exigem do possível colaborador um registro de conexão (login e senha).

7Existem outras formas hipertextuais fora do universo digital: recursos de marcação no texto impresso, por exemplo, como notas de rodapé e sumários, são entendidas como a primeira geração do hipertexto (PRIMO, 2003). Aqui, optamos por utilizar o termo hipertexto para referenciar o hipertexto digital, elaborado como linguagem de marcação na Web.

8Esta dupla perspectiva, funcional e técnica, é sugerida por Lévy (1999).

9Tradução da autora: With computers, writing, witch had always been phisical, now became a matter of codes – codes that could be changed, manipulated, and moved in entirely new ways. “Change the code, change the text” became the rule from whitch derive that advantages of so-called word processing.

10Termo conceituado por Bakhtin, o dialogismo expõe a composição do discurso ao processo relacional dos envolvidos. “O sujeito procura interpretar ou compreender o outro sujeito em lugar de buscar apenas conhecer um objeto. [...] trata-se de uma relação entre sujeitos, [...] e a compreensão aparece como uma espécie de resposta a questões colocadas pelo texto interpretado. Toda a compreensão é, desta forma, dialógica” (Barros, 2001 p.25).

11Ver Foucault (1992).

12Estas “sugestões” de leitura não se dão apenas na forma dos links do tipo “String to Lexia” (Landow, 2006, p.14), que ocorrem quando uma palavra ou grupo de palavras do texto criam uma hiperligação com outro documento inteiro, mas também através outras possibilidades de hiper-conexões, como quando há a inclusão de conteúdos hipermidiáticos de outros domínios em um texto qualquer, a partir de contextos hipertextuais mais facilmente visualizados em sua estrutura de código de programação.

13Emprega-se o conceito de polifonia, elaborado por Bakhtin, “para caracterizar um certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem” (Barros, 2001, p.36).

14O maior exemplo deste tipo de hipertexto seria, conforme os autores, a Wikipédia – enciclopédia digital mantida através das contribuições colaborativas de conteúdos feitas por indivíduos de todo o mundo.

15Muitos sistemas se utilizam do conceito de colaboração para o desenvolvimento de seu conteúdo: é o caso, por exemplo, da enciclopédia colaborativa Wikipédia e de sites de jornalismo participativo, como o Wikinews. Também é o caso de determinados editores de texto compartilhados, como o da empresa Google, que permitem a intervenção simultânea de mais de um editor no mesmo texto.

16Templates são as tabelas de organização de conteúdos em um site na Web.

17Blogar é o ato de publicar um conteúdo em um weblog.

18Tradução da autora: Anyone who’s taken an undergraduate survey course Will know that Vergil self-consciously read and rewrote Homer, and that Dante read and rewrote both Homer and Vergil, and Milton continue the practice. Such very active readers appear throughout the past two centuries.

19As Redescobertas representam a busca pelos efeitos de analogias ou de isomorfismos que, a partir das formas atuais do saber, tornam perceptíveis um figura que foi esboçada anteriormente; as Reatulizações são as reinserções de um discurso num domínio de generalização, de aplicação ou de transformação que é, para ele, novo; e os Retornos representam os movimentos que têm a sua própria especificidade e que caracterizam, justamente, as instaurações de discursividade.

20Tradução da autora: All of these forms of active reading differs from the experience of the hypertext reader in read-only systems, whose writing takes the form not of adding new texts but of stablishing an order of reading in an alredy-written set of texts.

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Submetido: 24/03/2009, aceito: 09/04/2009