doi: 10.4013/ver.2009.23.52.03

Confluências entre literatura e jornalismo, um estudo de1968: o que fizemos de nós
Confluences between literature and journalism, a study about 1968: o que fizemos de nós

Carla Lavorati
ca_lavorati@yahoo.com.br

Nincia Ribas Borges Teixeira
nincia@unicentro.br

Resumo. A confluência entre literatura e jornalismo contribuiu para o desenvolvimento de novos modelos narrativos. O livro-reportagem, gênero textual que nasceu e se definiu na fronteira de ambas as áreas, é um exemplo de narrativa onde ocorre a interação jornalístico-literária. Com um estilo híbrido entre jornalismo e literatura, Zuenir Ventura, no livro-reportagem 1968: o que fizemos de nós, produz um relato de profundidade e de maior sensibilidade. Para isso, utiliza sempre que conveniente os recursos advindos da literatura. Dessa forma, buscamos demonstrar a partir desta obra como os recursos literários podem contribuir para o enriquecimento das narrativas jornalísticas.

Abstract. The combination of literature and journalism has contributed to the development of new narrative models. Literary nonfiction, the literary genre which has been created and defined in the frontier of both areas, is an example of narrative where the journalistic-literary interaction occurs. With a hybrid style of journalism and literature, Zuenir Ventura, in his book 1986: what have we done of ourselves (free translated by the authors), produces a profound and sensitive report. In order to do so, the author uses literary resources when it is convenient. In this way, departing from this work, we intend to demonstrate how the literary resources can contribute to enriching journalistic narratives.

Há sim, uma fronteira entre jornalismo e ficção. Mas é uma fronteira permeável, que permite uma útil e amável convivência
Moacyr Scliar

A dinâmica jornalístico-literária

O jornalismo literário utiliza recursos de observação e redação inspirados na literatura. Seus traços básicos são: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, uso de figuras de linguagem, digressão e humanização. Edvaldo Pereira Lima (1995) esboça sua opinião sobre a dimensão e as possibilidades do jornalismo de características literárias. Para ele, no jornalismo literário o horizonte de tempo não se limita à atualidade, abrange a contemporaneidade. A liberdade de pautas é tão flexível quanto a complexa, mutante realidade da nossa civilização em acelerado processo de mudança.

A pesquisa pretende analisar o cruzamento entre literatura e jornalismo, bem como as influências que essas intersecções provocaram em ambas as partes e as características predominantes a alguns autores que realizaram esses “encontros”.

O objeto de pesquisa é a obra 1968: O que fizemos de nós, do jornalista Zuenir Ventura. A análise tem como meta explorar a maneira como o autor trabalhou o aspecto literário em um texto de natureza primordialmente jornalística, pois, observamos no livro não apenas as técnicas de entrevista ou reportagem, mas também a presença marcante de muitos componentes da literatura.

Em suas definições sobre a função e as características do livro-reportagem, Lima (1995) assinala que a principal virtude do livro-reportagem é a sua capacidade para preencher as lacunas deixadas habitualmente pela cobertura jornalística na sua abordagem do real. Segundo o autor, essa virtude vem sendo alcançada por duas razões. A primeira seria uma perspicácia superior na abordagem da realidade em termos de pauta. E a segunda, uma conseqüência da diversidade, posto que a falta de preconceitos em relação à escolha da pauta gera uma flexibilidade maior nas etapas posteriores. Assim, sem deixar de lado os preceitos fundamentais do jornalismo, o livro-reportagem amplia sobremaneira a função comunicativa desta atividade.

Ser expressivamente jornalístico significa, dentre outras coisas, que sua reportagem narrativa tem a obrigação de informar sempre do modo mais transparente. Por outro lado ser literário significa, grosso modo, narrar com efeito, com beleza e imaginação. Sem perder de vista os fatos (Lima, 1995, p. 58).

A pesquisa do livro-reportagem 1968: O que fizemos de nós pretende refletir como se materializa no texto a confluência jornalístico-literária. Estudando-o em seus aspectos estruturais e na maneira singular que transmite a informação jornalística, aproximando-o, sempre que pertinente, do jornalismo literário.

Em seu livro anterior, 1968: o ano que não terminou, encontramos um relato pormenorizado do que foi o ano de 1968. Para isso, o autor utiliza-se de recursos necessários para a elaboração de um romance embasado na realidade, que retratasse uma geração que, não só no Brasil, como em outros lugares do mundo, queria promover uma revolução em vários sentidos, mas que acima de tudo consegue uma revolução cultural.

No entanto, concentraremos na análise do livro 1968: O que fizemos de nós, com destaque para os momentos em que o autor utiliza-se de recursos advindos da literatura e os momentos em que a obra se insere em características do jornalismo convencional e do new journalism. Mas, antes de nos debruçarmos sobre a obra de Zuenir Ventura, faremos um rápido passeio pela trajetória da imprensa, e pelas singularidades e confluências entre a literatura e o jornalismo.

A literatura nos jornais

A sociedade européia, com o início das grandes navegações, estava ávida por mudanças, clamava por novos parâmetros, condutas e valores. A possibilidade de difusão de conhecimento pela impressão de livros e jornais foi um fator de extrema importância para o avanço cultural e para a preparação da sociedade para o acompanhamento do novo período que se iniciava, o Renascimento.

No Brasil, a impressão com tipos móveis chegou em 1808, junto com a família real. Os primeiros jornais brasileiros só apareceram 300 anos após o descobrimento e foram eles: O Correio Braziliense, produzido por Hipólito da Costa, editado e impresso em Londres e o jornal Gazeta do Rio de Janeiro, publicação oficial da corte portuguesa. Até meados do século XX, predominava uma literatura que aliava a noção de natureza à de pátria, que acreditava que a grandeza de uma estava ligada à variedade e exotismo da outra.

A literatura e a imprensa no Brasil confundem-se até os primeiros anos do século XX. Muitos jornais abrem espaço para a arte literária, produzindo seus folhetins, publicando suplementos literários e, assim, transformando os veículos jornalísticos em indústria periodizadora da literatura da época. Muitos escritores trabalharam como jornalistas: Machado de Assis foi aprendiz de tipógrafo e revisor de jornal; Manoel Antonio de Almeida escreveu no Correio Mercantil até 1850; Gonçalves Dias escreveu para a Revista Popular; Joaquim Manoel de Macedo, na Revista Popular; Olavo Bilac e Medeiros de Albuquerque, na Gazeta de Notícias e O País, em 1906 e 1907.

Nas redações, importantes escritores e poetas ocupavam lugar de destaque:

Quando o jornal se implantou como fonte de informação diária, ao alcance dos leitores, recrutou, entre os principais colaboradores, os letrados que já dispunham de notoriedade na utilização da palavra escrita: escritores, juristas, médicos, sacerdotes, engenheiros, enfim, todos aqueles vocacionados para a expressão artística, inclusive os autodidatas (Brito, 2007, p. 12).

Ciro Marcondes Filho considera esse período, compreendido entre 1789 e a metade do século XIX, “primeiro jornalismo”, época de ebulição de um jornalismo político-literário. “Nessa época do jornalismo literário, os fins econômicos vão para segundo plano. Os jornais são escritos com fins pedagógicos e de formação política” (2000, p.12).

No entanto, com o decorrer do tempo, o jornalismo sofreu muitas modificações. Novos parâmetros de escrita, linguagem e estilo foram adotados e a literariedade foi deixada em segundo plano. Segundo Lima, o jornalismo aos poucos foi se modelando e adquirindo novas características.

Num primeiro momento, o jornalismo bebe na fonte da literatura. Num segundo, é esta que descobre, no jornalismo, fonte para reciclar sua prática, enriquecendo-a com uma variante bifurcada em duas possibilidades: a da representação do real efetivo, uma espécie de reportagem com sabor literário dos episódios sociais, e a incorporação do estilo de expressão escrita que vai aos poucos diferenciando o jornalismo, com suas marcas distintas de precisão, clareza, simplicidade (1995, p. 138).

Após a Segunda Guerra Mundial, a postura dos intelectuais e escritores muda: a noção idílica de Brasil dá lugar à realidade do atraso socioeconômico, à consciência do subdesenvolvimento. Os escritores passam a discutir os problemas do país e tentar, via uma ficção participante, acelerar a revolução, garantia de uma vida melhor para todos. É o realismo social que irá impulsionar sobremaneira o jornalismo literário e contribuir para o livro-reportagem moderno. A literatura brasileira dos anos 1960/70 foi marcada pelos romances-reportagem e por textos memorialistas, com o mesmo objetivo de registrar a história imediata ou imediatamente anterior. Em ambos, os "fatos históricos" obedecem a enfoques pessoais, ou pessoalmente escolhidos como indicadores da realidade maior.

É importante ressaltar as ligações dessas mudanças com o momento histórico que o Brasil estava vivendo. O momento era de denúncias sociais e os narradores partiram para uma nova proposta, na qual o escritor se traveste de personagem para, assim, narrar um destino imaginário, mais interessante do que o real. A literatura faz uma aliança com o jornalismo, dando origem ao romance-reportagem numa experiência que funcionou, muitas vezes, como válvula de escape para o sufoco imposto aos jornais pela censura.

A década de 50 é simbolizada como a era da industrialização e o período da “indústria cultural”. Iniciou-se nesse período, principalmente com a chegada da televisão, o desdobramento de transformações nas artes e na cultura do país. O jornalismo literário fica para trás e o jornalismo empresarial começa a se consolidar passando a ser visto como algo que pode gerar lucros.

A transformação tecnológica irá exigir da empresa jornalística a capacidade de auto-sustentação, pesados pagamentos periódicos para amortizar a modernização de suas máquinas; irá transformar uma atividade praticamente livre de pensar e de fazer política em uma operação que precisará vender muito para se autofinanciar (Marcondes Filho, 2000, p. 13).

O jornalismo, como toda a imprensa brasileira, molda-se ao tipo de texto e linguagem capaz de ser consumido em escala industrial. A notícia passa a ser vista como uma mercadoria dentro do sistema capitalista. Ou seja, os grandes veículos de comunicação, em específico, o jornal impresso diário, passam a ser elaborados por meio de uma estrutura própria, em que os elementos notícia e informação começam a se ajustar aos modelos pré-estabelecidos que priorizam a concisão e a objetividade.

A contínua mecanização da produção jornalística e as conseqüências dessa modernização já eram observadas há mais de dez anos por Gabriel Garcia Marquez.

[...] las empresas se han empeñado a fondo en la competencia feroz de la modernización material y han dejado para después la formación de su infantería y los mecanismos de participación que fortalecían el espíritu profesional en el pasado. Las salas de redacción son laboratorios asépticos para navegantes solitarios, donde parece más fácil comunicarse con los fenómenos siderales que con el corazón de los lectores. La deshumanización es galopante.(Marquez apud Maia,2008.Disponível em http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2008/resumos/R10-0239-1.pdf

A obsessão pelo atual, pelo imediato, acaba por impedir que o jornalista busque mais informações e com elas apresente ao leitor um texto que dê possibilidades de uma leitura mais abrangente dos acontecimentos. De fato, o que surge é o aprisionamento da escrita nas normas restritivas que impulsionam o jornalismo “mercadológico”.

A prisão do jornalismo comum em torno da atualidade o impede de buscar as raízes, um pouco mais distantes do tempo, que explicam melhor as origens dos acontecimentos, bem como as motivações dos atores envolvidos (Lima, 1995, p. 19-20).

A investigação é característica básica para qualquer publicação jornalística, mas essa prática enfrenta muitas dificuldades. As atribulações das redações no esforço de noticiar o novo, o “furo”, antes que os seus concorrentes o façam, contribui para que o jornalista deixe de se preocupar com a investigação profunda dos acontecimentos

Em lugar da atualidade, o jornalismo de profundidade deve buscar ler a contemporaneidade, um conceito muito mais elástico do tempo presente, que transcende o meramente atual para focalizar com grande pertinência as implicações, hoje de eventos que não se deram apenas ontem, mas sim há anos, décadas, talvez (Lima, 1995, p. 19-20).

Literatura e jornalismo, hoje, têm uma aproximação e, muitas vezes, convivem na mesma obra ficção e factualidade. No momento atual, a ficção brasileira produzida, nos últimos anos, tem sido marcada pela diversidade. Hoje, é possível perceber três categorias de obras quanto ao emprego de recursos literários: as puramente de ficção, que tratam dos produtos do imaginário elaborados pelo escritor; as jornalísticas, que se apropriam dos recursos literários apenas para reportar melhor a realidade; e as que mesclam a ficção e o factual.

Reportagem, literatura e investigação

A reportagem não é basicamente uma matéria extensa, mas para ser caracterizada como tal precisa de predominância na forma narrativa, de humanização do relato, de texto impressionista e de objetividade dos fatos narrados (Sodré, 1986, p. 15). Não necessariamente todos estes componentes estão sempre presentes no gênero jornalístico da reportagem, mas o cuidado com a predominância da narrativa deve existir para que, durante uma escrita mais aprofundada, a coerência não se perca.

A reportagem pode ser factual, com relatos objetivos dos acontecimentos e seguindo o formato tradicional da pirâmide invertida (lead e sublead). Pode ser de ação, com relatos seguindo uma tendência mais ativa, com o repórter mais participativo, interagindo com o fato. E, entre outras, pode ser uma reportagem documental, mais comum no jornalismo impresso, em que é dedicado maior espaço, fundamentação e aprofundamento ao tema abordado (Sodré, 1986, p. 45-65).

As narrativas do novo jornalismo concentram-se em recursos específicos e descrições minuciosas de lugares, feições, hábitos, gestos, comportamentos, objetos. Elas procuram mostrar a realidade do mundo sobre outro ângulo privilegiando o relato profundo e subjetivo, que provoque emoções. Propõe-se que os fatos sejam tratados de maneira diferenciada, com maior profundidade e reflexão, tornando a escrita jornalística mais sensibilizada. A respeito disso Wolfe faz a seguinte observação:

Era a descoberta de que é possível na não-ficção, no jornalismo, usar qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais do ensaio ao fluxo de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto para excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor (2005, p 28).

O foco narrativo é, muitas vezes, alterado na perspectiva do novo jornalismo possibilitando ao narrador ser testemunha ou participante dos acontecimentos. Derruba-se o mito da neutralidade e imparcialidade da imprensa tradicional, em que não se podem variar os pontos de vista, o novo estilo abandonava dogmas do jornalismo tradicional, como neutralidade, distanciamento e narrativa sempre na terceira pessoa, para valorizar a figura do repórter no meio dos acontecimentos. Mas, sempre com a preocupação de se manter fiel à factualidade e à veracidade dos fatos.

Ao buscar inspiração no realismo social, com “o progresso do Novo Jornalismo ao longo dos anos 60, vê-se acontecer uma coisa interessante: os jornalistas aprendendo técnicas do realismo – especialmente do tipo que se encontra em Fielding, Smollett, Balzac, Dickens e Gogol” (Wolfe, 2005, p.52). Os ideais e objetivos do novo jornalismo passam a ser uma alternativa para escritores, assim como seus textos, que não se adequavam à estrutura limitada das notícias e ao imediatismo do formato fast food dos grandes jornais.

Mas é de fato a vertente do realismo social o que irá impulsionar sobremaneira o jornalismo literário e contribuir para o livro-reportagem moderno, como veremos. Tudo começa com aqueles autores ficcionistas que, embrenhados nessa linha literária, também contribuem para a imprensa produzindo peças jornalísticas (Lima, 1995, p.142).

Nesse período, despontam grandes nomes como John Reed (Os 10 dias que abalaram o mundo), Gay Talese (Aos olhos da multidão), Tom Wolfe (Os eleitos), John Hersey (Hiroshima), entre outros. Esses escritores desenvolveram a particularidade de dispensar grande tempo para cobrir cada matéria, trabalhando com a coleta minuciosa de dados. Tom Wolfe, assim, descreve seu trabalho como jornalista: “Eu tinha a sensação, certa ou errada, de fazer coisas que ninguém havia feito antes no jornalismo. Costumo imaginar a sensação dos leitores ao encontrar tudo aquilo rolando num suplemento dominical. E gostava da idéia” (2005, p, 37).

No Brasil, a corrente do novo jornalismo surge em um período conturbado por movimentos sociais, censura e limitações. Assume como característica a denúncia social aliada ao jornalismo e à literatura.

A censura atuante na imprensa, durante esse período, tinha como objetivo não deixar transparecer nos jornais nada que manchasse a imagem do governo e de seus governantes. Os jornalistas, além de terem suas matérias vistoriadas diariamente, viviam sob continua tensão. Um dos instrumentos de chantagem utilizado pelos governos militares era o corte das verbas publicitárias que eram destinadas ao veículo, chegando a violência e a repressão, assim, pretendiam forçar o jornal a aderir à auto-censura. Ou seja, o jornal que não seguisse as “regras do jogo” deixaria de circular, ou até mesmo teria seu fim decretado. O lado comercial da imprensa oferecia, pois, ao regime, muitas maneiras de pressionar: auditorias, suspensão de anúncios do governo, pressão sobre os anunciantes e gráficas particulares e confisco. Todas elas podiam prejudicar gravemente a liberdade de imprensa sem ter de exibir publicamente a restrição dessa liberdade. (Smith, 2000, p. 47)

Considerada um marco na história do jornalismo brasileiro, a revista Realidade primou por suas reportagens que combinavam escolha temática arrojada com texto bem cuidado, literário.

Lançada em abril de 1966 como “a revista dos homens e das mulheres inteligentes que querem saber mais a respeito de tudo”, a revista Realidade apresentava-se como uma publicação para a qual não havia tabus. Com intensidade variada, gerou polêmicas e inquietação cultural até janeiro de 1976. Apesar da ditadura militar no Brasil, a época era de efervescência, no país e no mundo: figuras como Che Guevara, Beatles, Rolling Stones marcaram a época, assim como os movimentos estudantil, hippie e feminista. O antimilitarismo manifestava-se na recusa de jovens americanos em lutar no Vietnã, nos movimentos brasileiros de oposição ao regime.

Por ser mensal, o tempo de apuração, fundamentação e documentação livrava os profissionais da revista do círculo vicioso e imediatista dos jornais. O repórter mergulhava no assunto que tinha de cobrir, por vezes até confundindo-se com o novo universo de abordagem. A captação da essência do assunto/tema não era apenas “intelectual” (razão), mas também emocional. Além disso, o texto de Realidade era solto, fora das fórmulas tradicionais do jornalismo diário.

Nesse sentido, os textos eram personalizados e permitiam o uso variado de técnicas literárias, de acordo com o efeito desejado. Antes de revelar, Realidade particularizava. Primeiro centrava o interesse num microcosmo específico – o dos salineiros do Rio Grande do Norte, por exemplo –, depois traçava uma perspectiva do mundo externo àquele microcosmo. Isto faz com que o leitor primeiro descubra o novo “cosmo” e então o compreenda sob uma interpretação mais abrangente.

Livro-reportagem: um gênero de confluências

A narrativa da reportagem e a narrativa literária, em especial, o conto, partilham, muitas vezes, elementos como a clareza dos fatos, o aspecto de novidade e a força que causa nos leitores, ou seja, o despertar no leitor da vontade de ler e chegar ao fim para conhecer seu resultado. E é nesse momento que o texto mostra parte de sua intensidade. A clareza é elemento fundamental ao jornalismo para que o leitor tenha uma compreensão satisfatória da obra. E, principalmente na reportagem, este elemento é imprescindível para que a leitura seja coesa e não se perca. Já a novidade está relacionada ao ineditismo e às abordagens diferenciadas, ligadas ao caráter imprevisível que um texto pode trazer, tanto em seu conteúdo, quanto em sua forma.

A diferença entre a literatura e qualquer outra atividade, segundo Ronaldo Lima Lins, é que, ao contrário das demais, que apresentam respostas, como a ação e a necessidade de transformar o mundo, a literatura reflete a vida e reflete sobre a vida. Possui, por isso, uma vantagem sobre outros recursos, tornando possível acompanhar os diferentes níveis da angústia, num confronto que se acentua ou se atenua, mas nunca desaparece da obra (Lins, 1996, p. 31). De fato, a literatura também aborda fatos reais, mas a partir do momento em que a obra é definida como tal, passa a ser uma retratação da realidade. Trata-se, nesse caso, de uma intenção, segundo Ronaldo Lima Lins, de representar em qualidade e extensão o que se passa na realidade.

Pela teoria da estética da recepção, o leitor adquire um papel importante na obra, uma vez que participa do processo criativo, tentando também decifrar o texto literário. Para o teórico Wofgang Iser, existe nos textos de ficção uma relação entre o real, o fictício e o imaginário.

Quanto ao aspecto da ficcionalidade do texto literário, observa-se que em tempo de hiper-informação, os textos literários utilizam-se, muitas vezes, de fatos reais. O romance policial, as biografias autorizadas, as narrativas de viagens são alguns dos exemplos em que ficção e realidade se misturam tão harmoniosamente que se torna quase impossível distinguir os limites entre o real e o virtual.

A linguagem jornalística contemporânea (talvez com o intuito de se tornar mais atraente e por influência de autores ficcionais), por sua vez, tornou-se também mais expressiva. Hoje, não raro, encontramos textos jornalísticos onde as metáforas, as metonímias, a utilização de campos semânticos (usando palavras no sentido conotativo), ou ainda a exploração do aspecto polissêmico das palavras, ganham cada vez mais relevo.

Já a linguagem do texto literário, atendendo a uma exigência de simplicidade e concisão, requisitos necessários na conquista do leitor, parece cada vez mais absorvida pelo trabalho e submetida ao rigor do tempo. Assim, pode-se considerar o livro-reportagem como um gênero autônomo que está situado na fronteira de dois discursos, o jornalístico e o literário. Ou seja, nasce e se define pela hibridação de suas narrativas, que ocorre por meio da junção entre elementos provenientes de ambos os discursos. Utiliza, dessa forma, o real, o acontecido, como material base na sua configuração. No entanto, é revestido de elementos oriundos da literatura, permitindo, dessa forma, a intervenção do subjetivo na construção do texto. Segundo Edvaldo Pereira Lima, o livro reportagem:

De um lado, amplia o trabalho da imprensa cotidiana, como que concedendo uma espécie de sobrevida aos temas tratados pelos jornais, pelas revistas e emissoras de rádio e televisão. De outro, penetra em campos desprezados ou superficialmente tratados pelos veículos jornalísticos periódicos, recuperando para o leitor a gratificante aventura da viagem pelo conhecimento da contemporaneidade (Lima, 1995, p. 7).

Dessa forma, o livro reportagem pode ser considerado “mais do que um simples repetidor de padrões e formas de praticar a comunicação jornalística com o público, esse veículo renova e dinamiza, principalmente quando trabalha, com todo o seu arsenal de possibilidades, a grande reportagem” (Lima, 1995, p. 8). Essa característica de liberdade temática, de angulação, de fontes e abordagem dá condições ao jornalista de ir além dos limites impostos pelo jornalismo convencional, para abraçar o vasto território de possibilidades do livro-reportagem.

Percebemos que a presença do hibridismo jornalístico-literário nas narrativas de livros-reportagens torna-os um gênero irreverente e rompedor de fórmulas e chavões em alguns casos, o livro-reportagem exerce função recicladora da prática jornalística, porque ousa incorporar contribuições conceituais e técnicas provenientes de áreas como a literatura e a história (Lima, 1995, p. 8).

Podemos considerar que uma das funções do livro-reportagem é preencher os vazios deixados pelo jornalismo periódico (Lima, 1998, p. 15). O livro-reportagem traz possibilidades, portanto, do factual e do transitório das notícias jornalísticas alojarem-se em campo perene. No entanto, esclarecemos aqui que os recursos literários utilizados nos livros-reportagens não são estanques. Isto é, as utilizações desses elementos variam de uma produção para outra.

Enquanto o jornalismo comum é efêmero, sua mensagem sendo pouco retida pelo leitor e caindo logo no esquecimento, o livro-reportagem tenta combater essa tendência, procurando unir a permanência à profundidade. Tudo isso sem perder a noção de que lhe compete utilizar uma linguagem acessível para o público medianamente culto. Assim, combina cultura erudita, cultura popular e cultura de massa, linguagem coloquial e linguagem formal (Lima, 1995, p. 30).

Dessa maneira, o livro-reportagem polemiza o noticioso (personagens, temas, fatos) por meio de manejo variável de literariedade e operações jornalísticas normativas e arbitrárias, de acordo com cada subgênero como veremos no próximo capítulo. Da mesma forma que o jornalismo, a literatura não se resume em total ficcionalidade como se poderia imaginar, uma vez que o autor, ao escrever, estará sempre respaldado por uma experiência de vida, atravessada por valores éticos, morais, religiosos, sociais etc. Daí encontrarmos, na literatura, representações do mundo social, com cargas diferenciadas de positividade ou negatividade, dependendo do aspecto que o autor pretenda destacar.

Portanto, recriando o real, literatura e jornalismo reproduzem identidades para o país. Devemos destacar, neste ponto, o que Pesavento (1998, p. 22) conclui: “Há, pois, um componente manifesto de ficcionalidade no discurso histórico, assim como, da parte da narrativa literária, constata-se o empenho de dar veracidade à ficção literária.”

1968: o que fizemos de nós. A literatura em fatos

Em 1968: o que fizemos de nós, Zuenir Ventura traça uma ponte entre o passado e o presente, e faz um balanço geral entre 1968 e a contemporaneidade. Ao analisar o ano de 1968 após anos de seu acontecimento, Ventura afirma que “[...], tenta identificar as marcas deixadas por 68 ao longo do percurso – algumas visíveis, outras imperceptíveis” (2008, p. 11).

Ventura sempre teve a preocupação em falar de assuntos da atualidade, na sua trajetória, tem sido um renovador da linguagem jornalística nos jornais em que trabalhou, como o Diário Carioca. O escritor-jornalista trata a imprensa como um fenômeno da cultura. O jornal impresso, para ele, não é um produto industrial, mas um bem cultural.

Jornalista de profissão, Zuenir sempre esteve próximo à literatura, sendo na formação em Letras, na ligação com os professores, ou como leitor assíduo. Segundo ele, as duas atividades não são antagônicas, mas convergentes, apesar de distintas. Cada uma tem a sua especificidade, mas uma não impede a outra:

Eu me formei em Letras Neolatinas e, até hoje, uso no jornalismo coisas queaprendi em Letras. Eu acho que a estética do jornalismo trabalha com fatosdemonstráveis, já a literatura trabalha com a mentira (ficção), com a invenção. Assim, você inventa o que quiser (Disponível em: http://chat02.terra.com.br/zuenir.htm).

Na literatura, ele diz ser possível mentir, inventar. Na ficção, não há compromisso com a verdade verificável. Para ele, a verdade no romance é diferente, é uma verdade própria. A literatura é capaz de criar um personagem que tenha muito mais coerência do que um personagem da vida real, porque ele passa a ser convincente dentro da própria lógica interna da narrativa (2008).

O jornalista é contra o estabelecimento de modelos rígidos de classificação, por exemplo, entre romance e jornalismo. Para ele, a expressão mais moderna é a de jornalismo literário, que exige mais tempo para que se tenha mais qualidade. A diferença concreta e objetiva é que você pode fazer um trabalho melhor, além de se ter mais espaço. É o que ele fez em 1968: O que fizemos de nós, ao mostrar a sua versão dos fatos.

Ao relatar os reflexos e propor reflexões sobre os acontecimentos do ano de 1968, o autor escolhe o modelo narrativo do livro-reportagem. Nesse caso, o livro torna-se uma interessante opção, pois proporciona condições para que o escritor conduza a narrativa com maior autonomia, tirando proveito, se necessário, de todos os recursos e as possibilidades que a literatura dispõe.

O livro está dividido em duas partes (68 após 68 e De olho na herança). São sete entrevistas: Heloisa Buarque de Holanda, Caetano Veloso, César Benjamin, Fernando Gabeira, Fernando Henrique Cardoso, Franklin Martins e José Dirceu. Como se vê, todos personagens “meia-oito”, têm o que dizer por ter participado diretamente dos acontecimentos e por ter assumido importância inequívoca na história brasileira, em maior ou menor grau. A escolha pela utilização de recursos literários na construção da narrativa de 1968: O que fizemos de nós é uma forma de libertar o escritor das amarras do jornalismo diário. E, assim, possibilitar o emprego de uma escrita de maior envolvimento pessoal, que permita a reflexão e a apreensão de outras formas de reportar a ação humana diária.

Na obra de Ventura, observa-se que o escritor na busca da matéria-prima para o fazer literário, vale-se de vários recursos. Em todo o livro ocorre, de certa forma, uma reciclagem de informações. Zuenir sabe, como poucos, trabalhar o material pesquisado, entremeando-o com informações novas, contando “causos” acontecidos com ele e com amigos e com amigos dos amigos. Aí entra o trabalho do repórter premiado, dono de um dos melhores textos do Brasil. Toda essa bagagem é posta inteligentemente a serviço da tese a que se propõe. Na narrativa de 1968: O que fizemos de nós, os fatos retratados não perdem a essência da realidade, ao contrário, estabelecem uma delimitação entre realidade, ficção e imaginário.

A imersão jornalística acontece quando o autor sai “a campo” e mergulha sem receios em busca de novas experiências para, a partir da realidade vivida, buscar condições de compreender e escrever com maior critério e discernimento sobre as relações entre o ano de 1968 e a atualidade.

Nos relatos do capítulo Sexo, Drogas e Rave, observamos claramente essa prática. O jornalista participou de uma festa rave para capturar com maior fidelidade alguns fenômenos sociais da atualidade e, com isso, adquirir maior embasamento para a formulação de suas reflexões. Zuenir Ventura aprofunda-se na pesquisa dos temas nos quais está trabalhando. Para escrever o livro, despiu-se de qualquer preconceito e foi a uma festa rave para ver, viver e se divertir com os jovens. O foco do jornalista não é virar e revirar o passado, mas sim, a partir dele, tentar compreender um pouco melhor a juventude e o mundo de hoje, tão transformados pela globalização, pela internet e pelas novas tecnologias.

No capítulo, encontramos as impressões do autor, bem como as descrições do ambiente, das pessoas e dos acontecimentos. São observações, na sua maioria, carregadas de subjetivismo, que buscam não isentar o escritor-narrador da realidade relatada. Assim, busca-se oferecer ao leitor uma narração mais detalhada, que recrie parcialmente a atmosfera que cercou a festa rave.

A visão inicial não foi nada agradável. Uma jovem vomitava num canto, logo na entrada, amparada por uma amiga. (...) achei que estava desembarcando no lugar errado (...) Um garoto soprava bolinhas de sabão e comemorava rindo quando elas estouravam. Um casal na minha frente se beijou demoradamente. (...) Abriu-se espaço para que duas moças dessem um show de malabarismo, manejando com habilidade circense dois malabares. Vi depois a mesma brincadeira utilizando fogo.(...) Atribui esse clima lúdico, meio infantil, à presença de tantos jovens com pirulitos pendurados no canto da boca, até que Anna me informou que não se tratava de uma regressão oral, como eu podia pensar: ‘É para não trincar os dentes’, ela disse, explicando que esse é um efeito causado pelo ecstasy (Ventura, 2008, p. 83, 85)

Segundo Edvaldo Pereira Lima, a pretensão de descrição como a do trecho acima é “[...] registrar gestos, hábitos, costumes, vestuário, decoração e tudo que sirva para o leitor situar, deduzir, inferir melhor o estado de ânimo dos personagens focalizados pela matéria, os cenários dos relatos, a época, a posição que ocupam na sociedade ou que gostariam de ocupar” (1995, p. 50). O intuito do autor é proporcionar ao leitor uma “impressão mais densa e completa da realidade que o relato produz” (Lima, 1995, p. 50).

Uma escada em caracol levava ao andar de cima, onde, em vez de cama, havia um colchão de casal jogado no chão, com o lençol amarfanhado. Enquanto os policiais recolhiam das gavetas e armários possível material para perícia, Marina, embaixo, aproveitava para interrogar rapidamente Milton – esse o seu nome - , que não demorou a confessar que se encontrava em liberdade provisória (Ventura, 2008, p. 76)

Fragmentos literários, coletados de diferentes textos e escritores, também figuram no livro. Como no momento que Zuenir Ventura recupera trechos do poema de Carlos Drummond de Andrade para, com isso, enriquecer, por meio da voz literária, as mudanças comportamentais e conceituais, ocorridas no percurso de 1968 ao ano 2008, acerca da importância do corpo e da estética na sociedade.

A bunda, que engraçada. Está sempre sorrindo, nunca é trágica. Não lhe importa o que vai. Pela frente do corpo. A bunda basta-se. Existe algo mais? Talvez os seios. Ora-murmura a bunda-esses garotos. Ainda lhes falta muito que estudar (Andrade apud Ventura 2008, p. 46).

O autor também disponibiliza textos de outros escritos, com temas relacionados ao ano 1968. Esse procedimento fortalece o embasamento do livro-reportagem e traz possibilidades para uma narrativa de maior profundidade. Um exemplo é a utilização da descrição do festival de Woodstock feita pelo jornalista americano Marshall Brain.

O problema é que não tinha jeito de aquela área abrigar tanta gente; então, quando os músicos começaram a chegar, o engarrafamento ficou gigantesco. Os carros foram abandonados no meio da estrada e as pessoas foram andando para o show. No dia do evento, aconteceram duas coisas impressionantes: primeiro, o festival se tornou num evento grátis. Simplesmente não tinha jeito de controlar a multidão, então os organizadores resolveram liberar a entrada. A cerca ao redor do local foi pisoteada e sumiu. (...) Foi um perfeito fiasco em quase todos os aspectos, exceto um: a música funcionou. Foi esse sucesso essencial que tornou Woodstock mundialmente famoso (Brain apud Ventura, 2008, p. 82-83)

No capítulo intitulado A culpa é de 68 – Como ainda dói nos filhos a lembrança do que os pais sofreram, o escritor reconstrói detalhadamente momentos marcantes da história de 1968. Observamos em muitas passagens a presença de uma narração pormenorizada, enriquecida pelos detalhes, impressões e sensações, tanto do autor quanto dos personagens, sempre com a preocupação de manter-se fiel à realidade. A liberdade do manuseio e aplicação da linguagem concedida ao escritor pelo livro-reportagem possibilita que encontremos nos melhores exemplares do gênero uma narrativa rica e sensibilizada, muito distante da frieza e superficialidade de textos jornalísticos que figuram nos jornais. Com isso consegue repassar ao leitor uma idéia mais exata do acontecimento e dos momentos de tensão e conflito, combinando com maestria a fidelidade ao mundo real e a melhor técnica literária.

No dia 11 de fevereiro de 1973, Criméia sentiu a bolsa romper e chamou o guarda. “Na cela tinha muita barata”, ela lembra. “Com o rompimento da bolsa, eles perderam a inibição e subiram em cima de mim”. O médico só apareceu no dia seguinte às 5 horas, e queria examina-lá ali mesmo. Ela resistiu, argumentando que, se ele fosse médico mesmo, a levaria para um lugar apropriado. Acabaram levando-a para o Hospital de Base de Brasília, onde ela se desentendeu também com outro médico, que ameaçava devolvê-la, alegando que a bolsa não estava rompida. Ela revidou xingando-o de “torturador”. Quando depois ele mandou um enfermeiro aplicar-lhe o antibiótico Benzentacil, uma injeção dolorosa, ela o tomou “com gosto”, pois a essa altura seu filho corria risco de infecção. Levada de novo para a cela, sentiu que tinha entrado em trabalho de parto e começou a gritar. Os outros presos, solidários, gritaram junto. (Ventura, 2008, p. 36-37)

Esse recurso, muito utilizado em narrativas do jornalismo literário, busca inspiração no realismo social da literatura. Foram escritores do século XIX – especialmente os grandes nomes da escola literária do realismo social, como o inglês Charles Dickens (1812-1870) e o francês Honoré de Balzac (1799-1850) – que inspiraram os jornalistas a aplicar ao relato da realidade as técnicas narrativas que empregavam no trabalho de ficção. Nesse sentido, aos jornalistas cabia um outro desafio: usar as mesmas técnicas narrativas, porém, com o objetivo de retratar com fidelidade o mundo real. A obra carrega muito dessa característica literária. Observe-se o fragmento:

De pé, só restava me distrair com uma cena inesperada para aquele lugar: uma gata gorda, pachorrenta, simulava uma briga com a cria, e o homem que abriu a porta brincava com as duas. Os três pareciam íntimos e tão entretidos entre si que não notavam o intruso que os observava – eu. Também não se incomodavam com a agitação daquele amanhecer. Os agentes iam chegando aos poucos. Às vezes aos pares, ora de um a um, de repente três de uma só vez. Cumprimentavam-se dando abraços e apertos de mão e desapareciam num largo corredor, à esquerda, que devia conduzi-los ao local designado para a reunião. Parei quando tinha contado dezoito, quase todos musculosos, baixos, mulatos ou pardos (Ventura, 2008, p. 70).

No que diz respeito aos componentes narrativos, observamos a presença freqüente de diálogos, esse recurso é utilizado em obras de ficção como o conto ou o romance, com a finalidade de tornar o texto mais próximo do leitor e conferir um ritmo de leitura mais agradável. No capítulo Reflexos do Baile Distante – o que restou dos tempos de Leila Diniz para as que são avós hoje – encontramos a transcrição dos diálogos ocorridos durante a conversa do autor com três personagens que estiveram envolvidas em acontecimentos marcantes do ano de 1968. São elas, Maria Clara Mariani, Marília Carneiro e Maria Lúcia Dahl. “São aquelas mesmas personagens marcantes do réveillon, do livro e do ano. Elas pertenciam a uma geração de jovens entre 20 e 30 anos que decidiu inaugurar um estilo de vida e experimentar formas alternativas de relacionamento” (Ventura, 2008, p. 15). Observe o trecho da conversa entre Marília e Maria Lúcia.

“Leila Diniz foi a primeira pessoa grossa que conheci”, revela Marília, e aí começa uma discussão entre ela e a irmã Maria Lúcia sobre aquela que foi um emblema da liberação de costumes, pondo em prática o que as três teorizavam.
Maria Lúcia - Ela era insuportavelmente grossa, e destoava da turma da gente. Em compensação, inventou aquela coisa bonita de abolir as batas, sair de biquíni grávida num tempo em que a grávida usava burca.
Marília - Ela foi uma pessoa importantérrima, Maria Lúcia.
Marília Lúcia - Sim, mas ficar lá no fundo do Antonio’s dizendo palavrão não tinha graça nenhuma.
Marília - Concordo que ela era extremamente malcomportada, mas tinha um lado solto muito simpático (Ventura, 2008, p. 17).

Desse modo, a utilização freqüente do discurso direto, onde ocorre a reprodução fiel da fala do personagem, serve como uma comprovação do que foi dito. Tom Wolfe afirma que “[...]os escritores de revista, assim como os primeiros romancistas, aprenderam por tentativa e erro [...] que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente do que qualquer outro recurso” (Wolfe, 2005, p. 54).

- São 9h10. Quem alugou isto aqui?
- Este apartamento é da minha namorada.
- Posso te falar um negócio? Fica quietinho, quando chegar na delegacia você chama seu advogado, e aí escuta o que ele tem pra te falar.
- Ta bom, doutoura, mas eu não fiz nada.
- Você acha que a gente tem um mandado de prisão contra você e você não faz nada? (Ventura, 2008, p. 77).

Também está presente no livro a narração em forma de discurso indireto, nesse caso, o narrador funciona como um filtro que faz a transcrição “subjetiva” do que lhe foi dito. Já o discurso indireto livre, em que se fundem a terceira pessoa, usada pelo escritor para narrar a história, e a primeira pessoa, com que a personagem exprime seus pensamentos, é pouco usado por Zuenir Ventura, resumindo-se a pequenos espaços do livro. Nesse momento, percebemos o autor mais voltado ao estilo jornalístico, com a utilização de modelos discursivos que lhe são próprios.

João Batista chama a atenção também para o fato de que a religião perdeu a dimensão mística, que era uma reguladora social. “Da noite para o dia, deu-se uma virada que deixa essa turma descrente de tudo e de todos. Tanto é que com um viciado, um deliquente, você precisa trabalhar a base de legitimações.” Segundo ele, “não adianta falar que maconha diminui os espermatozóides, que cocaína queima neurônios, que a lei duzentas e não sei quantas, parágrafos dois, torna o crime inafiançável. Nada disso funciona, Até pecado virou uma palavra engraçada (Ventura, 2008, p. 26).

Outra característica que aproxima a narrativa do formato jornalístico é a presença de entrevistas feitas pelo escritor. A utilização da voz de diferentes personagens tem como objetivo contribuir no processo de amarração das informações, pois o personagem é pautado para entrevista ou depoimento devido à sua relevância social ou envolvimento com a temática abordada. Isso pode ser observado no seguinte trecho da entrevista de Fernando Gabeira.

- O que 68 deixou de pior? Terá sido a arrogância, a onipotência?
FG – Existem pessoas que sonham com a mudança absoluta. É uma visão romântica, com características religiosas, de fim do mundo ou de salvação, que pode ser o fundamento de muitos crimes. Ela pode ser a utopia tal como a gente viu no século XX, produtora de muito sangue em nome de um paraíso futuro. Você trabalha com uma idéia tão generosa, com um mundo tão perfeito que a morte de um ou outro que está obstaculizando o processo não tem grande importância. É a teoria do novo homem, que quando não se enquadra bem, dá-se uma fuzilada, como aconteceu em Cuba (Ventura, 2008, p. 165).

Podemos observar que Zuenir Ventura trafega em seus dois livros, de forma habilidosa, entre os recursos e possibilidades da escrita jornalística e da escrita literária, disponibilizando aos seus leitores um texto de aprofundamento ao trabalhar com ampla pesquisa sobre o assunto e ao chamar o leitor para desenvolver um juízo crítico sobre o contexto sócio-histórico do ano 1968. Além disso, foge de limitações como o vício de enfocar apenas a atualidade e consegue promover a recomposição dos fatos, por meio da retomada dos fatores que antecederam e condicionaram os acontecimentos, isto é, a ocorrência do presente que justifique buscar alguma coisa do passado.

Assim encontramos em 1968: O que fizemos de nós um misto de qualidade narrativa, objetividade expressiva e aprofundamento. O que faz da obra um exemplar do jornalismo autoral, investigativo e literário. Ou seja, do momento em que a escrita jornalística se enriquece com “sabores” literários.

Conclusão

Ao se considerar as relações entre o jornalismo e a literatura, há de se ter sempre em mente que a base comum entre essas práticas é a linguagem. Não se pretende estabelecer a primazia de um sobre o outro. Jornalismo e literatura sempre apresentaram relações construtivas. São vários os exemplos em que as qualidades do grande escritor e do grande jornalista estiveram unidos de forma harmônica em um único indivíduo. Para Lima (1995), ser jornalista significa mostrar que a reportagem narrativa tem a obrigação de informar sempre do modo mais transparente. Por outro lado, ser escritor significa, grosso modo, narrar com efeito, com beleza e imaginação. Sem perder de vista os fatos.

Há que se considerar a presença de elementos comuns que estabelecem uma identidade entre o jornalismo e a literatura. Portanto, quer na literatura, quer no jornalismo, a reconstrução do real pode chegar, no máximo, ao verossímil. Tudo isso em relação ao plano da linguagem. Assim, coloca-se o jornalismo e a literatura numa relação de identidade a partir da materialidade da linguagem: a palavra.

Dessa forma, a utilização de recursos naturais da literatura em narrativas de caráter primordialmente jornalístico converge para a construção de um texto de qualidade, estilo e elegância. Que, a cada linha, intensifique o interesse do leitor pelo assunto abordado.

Acredito que, nesse contexto, e por sua própria característica e historia, o JL voltou a ser, no Brasil, uma alternativa valiosa para o processo de busca por compreensão social, assim como fora a literatura realista do século XIX – ela que, por sinal, foi quem soprou vida ao próprio Jornalismo Literário que então ainda engatinhava. Em busca por compreensão social inevitavelmente empurrará os repórteres-autores no sentido de não apenas identificar mazelas mas também dar voz a quem tem soluções viáveis a apresentar (ou a quem já as experimentou concretamente). Um país com uma iniqüidade gritante como o nosso não deveria dispensar as ferramentas da grande reportagem escrita com técnicas (somente técnicas) literárias (Brito, 2006, p. 23)

A escolha pela utilização de recursos literários na construção da narrativa de 1968: o que fizemos de nós é uma forma de libertar o escritor das amarras do jornalismo diário. E, assim, possibilitar o emprego de uma escrita de maior envolvimento pessoal, que permita a reflexão e a apreensão de outras formas de reportar a ação humana diária. Na obra de Ventura, literatura e jornalismo fundiram-se numa terceira via ao sabor do espírito da contracultura. Neste caso, foi a literatura que se prolongou no jornalismo reinjetando vitalidade através da experimentação estilística com o texto.

Jornalismo e literatura têm suas peculiaridades sem, no entanto, deixarem de exercer o seu estatuto básico: serem modalidades de comunicação. Tanto a literatura como o jornalismo utilizam-se da palavra para dar corpo e sentido a uma determinada história ou fato, seja ela verídica, na situação jornalística, ou ficcional, quando tratamos do mundo literário. É certo, também, que em determinadas situações discursivas trocam certas ferramentas, mas com propósitos diferentes e fronteiras, que, embora permeáveis, são limitadas.

1Jornalista. Graduanda em Letras Português e suas Literaturas da Universidade Estadual do Centro-Oeste, UNICENTRO, Guarapuava-PR. É bolsista do Programa de Educação Tutorial, PET-Letras. E-mail: ca_lavorati@yahoo.com.br

2Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Centro-Oeste, UNICENTRO, Guarapuava-PR. Pós-Doutora em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: ninciaborgesteixeira@yahoo.com.br

BRITO, J.D. de. 2000. Literatura e jornalismo. São Paulo, Editora Novatec, 209 p.

BUCCI, E. 2000. A armadilha do consenso sobre ética e imprensa. São Paulo, Companhia das Letras, 256 p.

CASTRO, G.; GALENO, A. (orgs.) 2002. Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo, Escrituras Editora, 156 p.

GONÇALVES, M.A.; HOLLANDA, H.B. de. 1994. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo, Brasiliense, 101 p.

ISER, W. 1983. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: L. COSTA LIMA (org.), Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro, Francisco Alves, vol. II, p.384-416.

KUCINSKI, B. 1991. jornalistas e revolucionários – nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo, Scritta Editorial, 399 p.

LIMA, A.A. 1969. O jornalismo como gênero literário. Rio de Janeiro, Agir, 64 p.

LIMA, E.P. 1995. Páginas ampliadas: o livro reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas, Editora Unicamp, 271 p.

LINS, R.L 1990. Violência e literatura. Rio de Janeiro, Tempo brasileiro, 160 p.

MAIA, L.P. A grande reportagem como criação literária: a experiência da Universidade Federal do Paraná. Acessado em: 03/11/2008, disponível em:http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2008/resumos/R10-0239-1.pdf.

MARCONDES FILHO, C. 2000. Comunicação e jornalismo: a saga dos cães perdidos. São Paulo, Hacker, 171 p.

PESAVENTO, S.J.; LEENHARDT, J. 1998. (orgs.). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas, UNICAMP, 308 p.

RAMONET, I. 1999. A tirania da comunicação. Petrópolis, Vozes, 141 p.

REIS FILHO, D.A.; FERREIRA, J.; ZENHA, C. (orgs.) 2000. O século XX: o tempo das dúvidas – do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 322 p.

SMITH, A-M. 2000. Um acordo forçado – o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV, 264 p.

SODRÉ, M.; FERRARI, M.H. 1986. Técnica de reportagem: notas sobre a narrativa jornalística. São Paulo, Summus, 144 p.

VENTURA, Z. 2008. 1968: o ano que não terminou. São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 288 p.

VENTURA, Z. 2008. 1968: o que fizemos de nós. São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 224 p.

VENTURA, Z. 2008. Entrevista. Acessado em 30/08/2008, disponível em: http://chat02.terra.com.br/zuenir.htm.

WOLFE, T. 2005. Radical chique e o novo jornalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 284 p.

Submetido: 18/12/2008, aceito: 26/02/2009