doi: 10.4013/ver.2009.23.52.02

O recorte do tempo pelos acontecimentos: um exercício de periodização para Comunicação
Cutting the time through the events: an exercise of periodization for Communication

Graça Rossetto
graca_rossetto@yahoo.com.br

Resumo. Este artigo apresenta uma metodologia desenvolvida para realizar um trabalho de periodização na área da Comunicação, oferecendo subsídios teóricos da História. Num primeiro momento, define-se o tempo para a História aplicando-o também à Comunicação. Em seguida, são examinadas algumas periodizações já realizadas no Brasil por essa área do conhecimento. Finalmente aplica-se a metodologia a um objeto até então inexplorado: a cabodifusão no Brasil, levando-nos às considerações finais sobre o projeto realizado.

Abstract. This article presents a methodology developed to perform a work of periodization in Communication area. First, it defines the time for the History applying it to the area of Communication. Next, we examine some periodizations already performed in Brazil by this area of knowledge. Finally, the methodology is applied to an object hitherto unexplored: Brazilian cabodifusion, leading us to the final comments about the project.

Introdução

A história de determinada tecnologia nada mais é do que o seu desenvolvimento com o passar dos anos. Esse, por sua vez, está condicionado a uma série de variáveis que fazem com que se crie uma trajetória histórica e não outra. É a combinação dessas variáveis que dita o ritmo, o caráter e escreve a história.

Como nos diz a filosofia da História, são os acontecimentos que constroem o tempo na história, e não o contrário. Nessa construção, as tais variáveis formam momentos históricos, marcados pela sua incidência de determinada maneira, fazendo com que se criem períodos de desenvolvimento diferentes, no entanto, marcados pela atuação de variáveis semelhantes, modificadas pelos próprios acontecimentos com o tempo. A esses períodos de desenvolvimento diferentes dá-se o nome de fases.

A tarefa de recortar esses acontecimentos pelo tempo prescinde de uma sistematização clara, fornecida pela teoria e filosofia da História. Este trabalho descreve a metodologia elaborada para realização de uma periodização, especificamente da cabodifusão no Brasil. Ela é parte da dissertação O recorte do tempo pelos acontecimentos: uma periodização da cabodifusão no Brasil, defendida em fevereiro de 2008 na Universidade Federal da Bahia.

A cabodifusão é a transmissão de dados, voz, texto e imagens através de cabos coaxiais e/ou de fibra ótica. Economicamente é uma área de reprodução de capital em desenvolvimento no país. Do ponto de vista social, é, ou pelo menos deveria ser, um meio alternativo à transmissão e troca de informações, com especial atenção dada ao conteúdo disseminado (no caso da televisão). Politicamente é também, ou deveria ser, uma ferramenta do que se convencionou chamar fortalecimento da cultura nacional; mas é, antes disso e certamente, motivo de lutas, acordos, brigas e forte jogo de interesses, fomentado por suas possibilidades econômicas.

Ao elaborar esta pesquisa, buscou-se a construção de uma metodologia concretizada com a fundamentação histórica. Para tanto, foi necessário resgatar fundamentos essenciais da História, de modo que o objeto se faça entender, não somente relacionado à comunicação, mas também a essa outra área do conhecimento: como um negócio e como um meio de comunicação, ambos dentro de uma perspectiva histórica por ela resguardada.

O tempo e a sua divisão na História

A divisão da história em fases é o exercício de traçar, descrever e recortar, com base em momentos marcantes, a trajetória de desenvolvimento de determinado objeto. Nessa atividade, tanto a análise do contexto, como do mercado e da sua relação com o Estado, constituem os subsídios para apresentar, de forma sistemática, a totalidade da história política, econômica e, quando o caso, tecnológica do objeto da pesquisa, marcando suas diferentes fases.

A discussão teórica que levou à criação da metodologia de periodização foi baseada na História e na Comunicação. Para a História, o tempo é dividido como uma ferramenta metodológica para o estudo dos acontecimentos no seu desenvolvimento. Os acontecimentos “são um corte que realizamos livremente da realidade, um aglomerado de procedimentos em que agem e produzem substâncias em interação, homens e coisas” (Veyne, 1998, p.46).

Não obstante, “o tempo não é aquele que a história narra; é somente meio em que as tramas históricas se desenvolvem com liberdade” (Veyne, 1998, p.62), porque sempre é preciso haver uma escolha no trabalho de qualquer história para evitar dispersão de singularidades e uma indiferença em que tudo teria o mesmo valor.

No entanto, tudo é digno de história e o que determina qual história irá se formar pela seqüência dos acontecimentos é a trama escolhida. Fatos não significam nada se não estão inseridos em tramas. Ao mesmo tempo, os fatos, dentro de uma trama, têm uma seqüência lógica, uma organização natural relativamente pronta que deve guiar a descrição. A busca por essa organização é o esforço do pesquisador no relato histórico.

Eleitos o assunto e a trama, os fatos não podem ser modificados. A verdade histórica é concreta, acessível e limitada por seus acontecimentos. Cercados por esses limites, encontram-se vários caminhos para a trama e todos eles são válidos, “mesmo que não sejam interessantes”, acrescenta Veyne (1998, p.63). Um dos fundamentos da atividade de periodização está no destaque que deve ser dado a qualquer mudança no curso da trama. Para distinguir quais são esses acontecimentos dignos da História, capazes de mudar o curso da trama, o pesquisador lhes atribui valor dentro do corpo escolhido.

Como um acontecimento só é conhecido mediante indícios, o desenrolar de uma trama deve ser levado pelas especificidades desses indícios. Como sugere Michel de Certeau, o trabalho começa com o gesto de separar, reunir e transformar certos objetos distribuídos de outra maneira em indícios, provas e/ou documentos. Como em algumas ciências exatas, existe a necessidade de isolar um corpo, ou um indício, para desfigurá-lo e constituí-lo como peça capaz de preencher lacunas de um conjunto anteriormente proposto: a trama.

O tempo não é o objeto da história ou seu material de análise.

O tempo da história é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos como o lugar de sua inteligibilidade.
[...]
Esse tempo verdadeiro é, por natureza, um continuum. É também perpétua mudança. Da antítese desses dois atributos provêm os grandes problemas da pesquisa histórica. Acima de qualquer outro, aquele que questiona até a razão de ser de nossos trabalhos. Sejam dois períodos sucessivos, recortados na seqüência ininterrupta das eras. Em que medida [...] devemos considerar o conhecimento do mais antigo como necessário ou supérfluo para a compreensão do mais recente?’ (Bloch, 2001, p.55).

Mais do que para fins puramente didáticos, o tempo é essencial para qualquer ciência e para cada uma pode assumir diferentes funções. Entretanto, é fato que para a História sua indicação fundamental está em realizar demarcações especiais no desenrolar dos acontecimentos.

Assim, ele configura-se como um sistema de referência, dotado de uma filosofia que faz parte do trabalho de análise e que se organiza não só em função da sua própria lógica, mas também sob a subjetividade do autor. Subjetividade essa que escolheu a trama e, dentro de seus limites e objetivos, escolhe o que naquele momento é digno de utilização.

Na divisão do tempo a Historiografia separa seu presente de um passado e repete constantemente esse gesto, decompondo o pretérito e escolhendo suas realidades cronológicas segundo as preferências e necessidades da pesquisa. A cronologia da Historiografia se compõe de períodos entre os quais se indica sempre a decisão de uma mudança, de algo que, por determinado fato, passa a ser outro. O que precedeu a modificação torna-se passado, logo, o corte é o postulado da interpretação que levou a tal modificação e as divisões organizam as representações a serem constantemente interpretadas.

Um incessante trabalho de diferenciação (entre acontecimentos, entre períodos, entre dados ou entre séries, etc.) é, em História, a condição de todo o relacionamento dos elementos distintos e, portanto, de sua compreensão. [...]. O corte definitivo em qualquer ciência (uma exclusão é sempre necessária ao estabelecimento de um rigor) toma, em história, a forma de um limite original, que constitui uma realidade como ‘passada’ e que se explicita nas técnicas proporcionadas à tarefa de ‘fazer história’ (Certeau, 2006, p.47).

A cronologia é um dos serviços que o tempo presta à História. É ela a condição para que haja o recorte em períodos, buscando no presente o que é o término de um percurso.

A forma de dividir os períodos de uma história específica não tem receita. Eric Hobsbawn (1998) afirma que ela deve ser feita quando a mudança social acelera ou transforma a sociedade para além de certo ponto. Nesse momento, o que ocorria até então deixa de ser o padrão e se dá início a um novo paradigma. Paul Veyne (1998), citado anteriormente, defende o corte para quando o curso da trama é modificado.

O tempo histórico deve ser dividido porque, por um lado, visa ao momento presente através de um distanciamento; por outro, porque supõe uma série finita, cujas especificidades parecem permanecer incertas. O estabelecimento de sua divisão dá início a um preenchimento de lacunas características dos acontecimentos históricos, além de permitir à atualidade sua existência no tempo.

Nessa necessidade, porém, há que se tomar algum cuidado. Fernand Braudel, em sua obra de 1978, fala de erros de perspectiva que podem ocorrer quando se tenta ligar tempos diferentes. O perigo está em colocar no mesmo quadro movimentos que não têm a mesma duração nem a mesma direção, que se integram, uns no tempo dos homens – breve e fugidio – e outros no tempo das sociedades, para as quais um ano, por exemplo, não significa grande coisa e um século, por vezes, não é mais que um instante de duração. Ressalta: “Não há um tempo social com uma única e simples corrente, mas um tempo social com mil velocidades” (Braudel, 1978, p.28).

O tempo histórico aplicado à Comunicação

Dividindo o desenvolvimento do objeto proposto, é detectando os acontecimentos e acompanhando-os na trama histórica que serão localizados aqueles mais relevantes para a história específica e para a realidade brasileira de cada momento.

Além disso, a História, assim como a Comunicação, no caso deste trabalho, não se concentram somente na narração, mas no entendimento e principalmente na explicação dos fatos e acontecimentos. Esta prática é apoiada por Veyne e Braudel, que expressam desconfiança a respeito da história que se limita ao relato dos acontecimentos.

Portanto, como sugerem os teóricos consultados até aqui, essa periodização depende e se dá de acordo com as transformações sociais concretas que fazem parte da cabodifusão brasileira e suas circunstâncias. O objetivo é provar que, no presente, com base em fatos, acontecimentos, documentos e algumas vivências do passado, é possível descrever e compreender a trajetória dessa tecnologia. Por isso, a atividade escrita tem início a partir de um tempo novo, separado dos anteriores e que se encarrega da construção de uma razão no presente.

Na construção desses períodos, devem ser observadas as singularidades de cada análise (de cada período) e questionada a possibilidade de uma sistematização totalizante. Ao problema é essencial uma discussão proporcionada por uma pluralidade de procedimentos científicos, sobretudo o contexto envolvido.

Tratando-se da História em qualquer pesquisa, esta deve comportar diferentes estágios de formulação e análise, dos quais esta última deve incluir a assimilação dos fatos e eventos relevantes em quadros de referência coerentes, a causalidade dos acontecimentos e sua importância para si e para o todo. Além da competência e da sistematização da interpretação da história. Essa deve abstrair o empirismo e criar estratégias e métodos coerentes e inteligentes na análise de fatos e documentos.

Na construção deste tipo de conhecimento podem ser encontradas distintas interpretações sobre um mesmo assunto. Para essa realidade, Michel de Certeau pontua que “está claro que elas são relativas à resposta que cada autor dá a questões análogas no presente. [...] Uma leitura do passado [...] é sempre dirigida por uma leitura do presente” (2006, p.34). Isso significa que ele defende não uma fragmentação arbitrária entre especialidades diferentes, mas a busca pela compreensão de uma unidade e seus princípios organizadores, quiçá a totalidade também de um período.

Com base nessa defesa de Certeau foram feitas as distinções entre Estruturas e Agentes2, como padrões e peças fundamentais a serem analisadas em cada período. Na construção dos períodos através dessas variáveis, a descrição e interpretação transformam a pesquisa de um sentido desvendado pela realidade observada em análise das opções ou das organizações de sentido, implicadas por operações interpretativas. Nessa tarefa, acaba ocorrendo uma confrontação entre um passado e um presente, ou seja, entre aquilo que organizou o começo da cabodifusão e que hoje permite vislumbrá-la tal como se mostra. Novamente, coerente com os princípios da Filosofia da História, não se trata de nada mais do que um passado que, com uma série de acontecimentos precedentes, organizou a vida ou o pensamento e aquilo que hoje permite pensá-los. É o sentido histórico de que nos fala Michel de Certeau.

Por todas as armadilhas que essa empreitada pode ocasionar, Certeau sugere um incessante trabalho de diferenciação (entre acontecimentos, períodos, dados ou entre séries), tal como esta pesquisa pretendeu realizar.

A diferenciação é, em história, a condição de todo o relacionamento dos elementos distintos e, portanto, de sua compreensão. [...] O corte definitivo em qualquer ciência (uma exclusão é sempre necessária ao estabelecimento de um rigor) toma, em história, a forma de um limite original, que constitui uma realidade como ‘passada’ e que se explicita nas técnicas proporcionadas à tarefa de ‘fazer história’ (Certeau, 2006, p.47).

Assim, os resultados da pesquisa estão expostos de acordo com uma ordem cronológica. A constituição de séries e o isolamento de conjunturas específicas flexibilizam a rigidez de uma possível ordem pré-estabelecida. O modo como são apresentados os resultados presta ainda outro serviço à compreensão da pesquisa: torna compatíveis os contrários, possibilitando traçar paralelos em cada subdivisão do tempo e, conseqüentemente, possibilitando a compreensão de posições antinômicas. Nesta concepção, as unidades formam um todo em que o exposto tem compartimentos separados, cada qual devidamente pronto para ser preenchido.

A periodização na Comunicação

Ferraretto e as seis fases do rádio brasileiro

Em seu livro Rádio: o veículo, a história e a técnica (2001), alguns capítulos são dedicados a uma periodização que, em seis fases, relata a implantação e o desenvolvimento do rádio no Brasil.

Ferrareto não detalha a metodologia para os recortes, mas ao justificá-los com fatos importantes para sua história deixa subentendido que considerou os movimentos mais importantes da indústria em cada momento. Isso só não acontece no último período definido, destituído de um fato marcante para seu início. Além disso, há uma variação do norte desses recortes (de natureza legal ou política, tecnológica e mercadológica). Por outro lado, sua análise dentro de cada período foi bastante explorada. Mesmo que de forma não sistemática, foram analisados praticamente os mesmos pontos, o que oferece ao leitor uma ampla visão das circunstâncias que envolviam o veículo em cada momento histórico.

As três revoluções da televisão de Eli Noam

Ao analisar o trabalho de Eli Noam (1995), que trata do desenvolvimento dos sistemas de televisão ao redor do mundo em três períodos, o que fica evidente são dúvidas. Faltam as datas e se não temos períodos definidos em décadas, anos ou meses, não temos de fato um recorte do tempo transcorrido. Mesmo a boa retórica e análise das mesmas variáveis em cada fase não são suficientes para caracterizá-lo como uma verdadeira periodização.

Capparelli: de sua “Comunicação de massa sem massa” à “Periodização nos estudos de televisão”

Um dos primeiros pesquisadores da Comunicação a trabalhar com periodização foi Sérgio Capparelli, em 1980, com o livro Comunicação de massa sem massa. Naquele ano, ele periodizou o desenvolvimento da televisão no país dividindo-o em duas fases. Sem justificar a metodologia utilizada, infere-se o mesmo do trabalho de Ferrareto, no entanto, observa-se alguns aparentes enganos.

Primeiro, ao considerar um “momento de transição” no lugar de um acontecimento capaz de causar uma ruptura para seu ponto de corte. Segundo, ao eleger para seu recorte um fato mais importante para a História do Brasil, do que para seu objeto específico.

Capparelli ainda explora essa temática por alguns anos: em 1982, com o livro Televisão e capitalismo no Brasil e com um estudo de 1999, intitulado A periodização nos estudos de televisão, em que analisa criticamente alguns trabalhos desse tipo.

O mercado brasileiro de televisão por César Bolaño

Como o próprio título anuncia, o objeto de estudo é o mercado, a televisão a partir do momento em que foi vislumbrada e tratada como um setor de produção e reprodução de capital. Em decorrência da escolha, Bolaño esclarece que, mesmo em caráter de periodização, não lhe interessa a fase de implantação da televisão e suas primeiras experiências. “Da década de 50, interessa-nos basicamente definir [...] o padrão de concorrência dominante, para que possamos entender o significado das transformações que ocorreram a partir de meados dos anos 60” (Bolaño, 1988, p.75).

O autor foi claro ao especificar a trama escolhida e apontar seu ponto de partida, comungando com as proposições da História. Da mesma forma, explicitou os critérios que o fizeram dividir e detalhar as duas fases, analisando-os em cada descrição. No entanto, seu trabalho em periodizar a televisão brasileira não parou por aí. Data de 1999 o artigo A economia política da televisão brasileira que em um de seus tópicos trata da Periodização da TV de massa no Brasil, fazendo referência e criticando alguns recortes de exercícios similares.

As duas fases da televisão de Marcondes Filho

Em 1994, Ciro Marcondes Filho dedicou algumas páginas à temática em estudo, criando duas fases para a Televisão em seu livro homônimo.

Da mesma forma como autores já citados, este não apresenta qualquer metodologia. Além disso, os pontos de corte não foram bem definidos, sendo somente citados e tomados por décadas, sem fatos marcantes ou acontecimentos que ocasionassem rupturas no seu curso histórico. O viés da trama apresentada é de cunho social, considerando sempre, em primeiro lugar, as circunstâncias sociais em que se convivia com o meio de comunicação e suas conseqüências.

Do elitismo à convergência com Sérgio Mattos

A divisão de Mattos é uma das mais conhecidas e adotadas como ferramenta de ensino da história da televisão brasileira. Ao dividi-la em seis fases, pretendeu “obter um perfil global de sua evolução”, com cada fase correspondendo a um período definido, a partir de acontecimentos que serviram como ponto de referência, considerando os contextos social, econômico, político e cultural brasileiro.

No entanto, algumas falhas são claras. Primeiro, e talvez mais importante, é a falta de critérios bem definidos para os recortes temporais. Apesar de o autor afirmar que selecionou os acontecimentos mais relevantes, na maioria deles não cita esses episódios e o ano passa a ser somente uma referência motivada por uma série de pequenos fatos, às vezes pouco relevantes para a trama escolhida. Além disso, algumas variáveis não foram exploradas em determinadas fases, quebrando o padrão de análise. Por fim, temos a falta de uma cronologia dentro dos recortes. Em determinados períodos, Mattos fala de acontecimentos da fase posterior e às vezes anterior, o que acaba deixando o leitor confuso em meio a tantas datas.

Brittos e a TV paga brasileira

Chegando ao fim desses relatos, reduzimos seu foco a uma parte de um capítulo da tese de doutorado de Valério Brittos, que divide o desenvolvimento da televisão por assinatura no Brasil em três períodos.

Como outros autores, ele também não explicita os critérios utilizados para as delimitações temporais, mas, o faz de forma implícita ao apresentar sempre os “momentos críticos” como rupturas de cada período.

Todos esses são complexos exercícios de periodização, principalmente porque de modo geral consideram a TV como um todo e não seus fragmentos. Além disso, alguns desses trabalhos são partes de estudos mais amplos, o que explica a falta de justificativas específicas.

É claro que não se pode esquecer quão difícil é a tarefa de descrever, analisar e nomear um objeto ao mesmo tempo presente, passado e futuro; mas também não se pode negar, de um lado, a falta de rigor teórico e metodológico para a tarefa, por parte de seus autores; e, por outro, a aparente dificuldade de eleger e avaliar as mesmas variáveis nos diferentes períodos.

Portanto, é possível dizer que há uma carência crônica de um pano de fundo teórico que sustente generalizações e retórica. Ademais, há uma posição unânime que enxerga a televisão (como o rádio e a televisão a cabo) somente, ou mais profundamente, na sua dimensão institucional; isto é, como uma indústria e suas organizações sendo moldadas pela política governamental, pelos movimentos econômicos e pela administração corporativa. No geral a prioridade é dada à influência do poder econômico e do Estado na estruturação e desenvolvimento do serviço de comunicação, viabilizando críticas ligadas à teoria da dependência, ao imperialismo cultural e às políticas neoliberais.

A periodização é um desafio do exercício histórico. O agrupamento de desenvolvimentos em fases significantes adiciona tanto luz à análise e coerência dos acontecimentos e da narrativa, quanto escuridão ao entendimento do todo, ao fazer uso da diferenciação excessiva das variáveis e das próprias fases.

Os exercícios aqui descritos e analisados são mais um recitativo factual, geralmente baseado em datas, sem um princípio explicativo forte e justificado. Falta o subsídio da História como disciplina, ao qual agora buscamos recorrer.

A cabodifusão no Brasil: aplicando a metodologia

O princípio organizativo desta periodização pretende discutir a cabodifusão brasileira a partir da chegada da televisão por assinatura, como um processo que envolve sua implantação e desenvolvimento como um todo, ao invés de focar especificamente a TV a cabo como tecnologia, sua programação ou linguagem, ou mesmo como área de reprodução de capital. A idéia é de relação mútua entre seus diferentes âmbitos.

A opção por esse enfoque é para que se crie uma periodização atualizada e ampla do processo de cabeamento, que não mais pode ser visto ou entendido somente como televisão, considerando todas as possibilidades tecnológicas, econômicas e sociais do objeto.

A proposta levou a que o ponto de partida fosse o ano de 1958, quando se tem registro do seu primeiro indício; e que o ponto final fosse a data mais recente possível, no caso, devido às delimitações da pesquisa, 31 dezembro de 2007.

O norte para os recortes temporais foi a regulação, que diz respeito aos movimentos legais ocorridos em cada momento. Isso, no entanto, não significa que ela é puramente direcionada por tal atributo. Dentro dos períodos, outros predicados vão se destacando e podem até ser o mote para alguns deles.

Critérios utilizados nas demarcações

Para explicação e entendimento das fases, foram previstos indicadores a serem analisados em cada período. Para criá-los e classificá-los foi preciso dividi-los, em primeiro lugar, em duas grandes categorias: as estruturas e os agentes. Em seguida, a estrutura separa-se em política, econômica e tecnológica; e os agentes em políticos e econômicos.

Considerando a regulação como guia, é necessário que sejam analisados os agentes que influenciaram aquele processo e, conseqüentemente, formam as estruturas de cada momento histórico. Deste modo, os agentes políticos são aqueles capazes de exercer algum tipo de controle na formação de uma estrutura política. Entre eles estão órgãos governamentais, entidades ligadas à sociedade civil ou os consumidores e, de forma secundária, empresários do setor3.

A estrutura política compreende o momento e os movimentos legais em vigência, o regime político em questão e os processos políticos que tratam da cabodifusão. Assim, a cabodifusão deve ser considerada mediante sua estrutura legal e normativa, ao mesmo tempo que deve compreender a atuação dos órgãos governamentais que exercem alguma ascendência sobre as políticas de comunicação.

A estrutura econômica é basicamente conseqüência das ações dos agentes econômicos que atuam no setor. É claro que o modo de produção contemporâneo é a essência desta variável, mas o que a compõe de fato são os atores que agem para e sobre ela. Nesse papel, encontram-se o empresariado e o Estado4.

Por fim, a estrutura tecnológica diz respeito ao momento do desenvolvimento tecnológico pelo qual passa o mundo. Sobre ela têm influência o próprio ritmo de desenvolvimento tecnológico5, as empresas do setor e, às vezes, o próprio Estado (seja desenvolvendo ou regulando, ou não, a prestação dos serviços).

A partir dessas subdivisões se colocam, em cada fase, as seguintes perguntas:

(1) Qual a estrutura política? Econômica? Tecnológica?
(2) Qual a atuação dos agentes políticos? Econômicos?

Como resposta a cada pergunta vão sendo traçadas condições e circunstâncias relativas a cada fase. Assim, são marcadas as negociações legais de cada período, número de assinantes, investimentos empregados, investidores, tecnologias desenvolvidas, localidades alcançadas, concentração do mercado, tipo de atividade paga oferecida, estratégias adotadas, penetração, alcance, etc.

Isso não quer dizer que exista uma hierarquia entre estruturas e agentes e condições internas e externas. Todos os tipos de determinantes, incluindo as estratégias empresariais e as condições estruturais que as limitam, definem modelos de regulação e características que garantem a estabilidade dinâmica de uma dada estrutura durante certo tempo, no qual fica garantida, pela ação histórica daqueles mesmos tipos de fatores, a continuidade do seu desenvolvimento até que o conjunto se torne disfuncional e entre em crise. A partir daí, tem início a transição para uma nova situação de certa “estabilidade” ou características estruturais sob novas condições.

Com base nessa metodologia, foram formuladas quatro fases que dão conta do período proposto.

A primeira delas (1958-1988) foi chamada de fase da anarquia regulatória. Durante esses 30 anos o movimento era de tentativas de regulamentação e formação do mercado.

O segundo período começou em 1989 com a construção do marco regulatório. Assim batizado foi até 1994, tendo como resultado concreto os esforços de negociação orientados para um objetivo comum: a sanção da Lei do Cabo.

Iniciada com a Lei 8.977/95, a terceira fase ficou caracterizada como de implantação do novo marco regulatório das telecomunicações. Não foi somente o cabo que ganhou uma regulação que deveria ser implementada a partir de então. Com a privatização das empresas estatais de telefonia, foi criada a Lei Geral de Telecomunicações, em 1997, e assim os novos paradigmas para todo este setor.

A partir do ano 2000, a permissão para as operadoras de cabo explorarem livremente os serviços de valor adicionado dá o marco legal que faltava para o início da quarta fase: da convergência e indefinição regulatória. Depois de crises financeiras e reformulação do modelo de negócio, o mercado passa novamente por rediscussões de ordem legal – a partir da discussão do PL 29/2007 –, o que torna esse último período ainda mais rico para o trabalho.

Assim, 2008 (e provavelmente 2009) se torna um importante ano para a história da cabodifusão e das telecomunicações no Brasil. Além das discussões sobre o PL 29, outro fato imprimiu um caráter mais convergente ao momento atual. A Net, maior operadora de cabo, estreou seu sinal de alta definição simultaneamente à TV aberta, no dia 2 de dezembro de 2007.

Este último período caracterizado e discutido nesta periodização fica sem final marcado, mas com grandes possibilidades de resolução a curto prazo. Como feito nas delimitações anteriores, esta fase deve dar lugar à uma nova no momento em que se estabelecer um novo, e já em fervente discussão, marco regulatório. O cenário está em crise e o debate em processo, o colapso e o estabelecimento de novos padrões é certo.

Considerações finais

Seja avaliando décadas ou dias, o tempo é uma ferramenta metodológica para o estudo dos acontecimentos e compreensão de qualquer trama. Deles (dos acontecimentos) as significações são essenciais e a análise da sua coerência lógica pré-determinada importante de ser considerada.

A posição aqui defendida oferece a base teórica concreta para os recortes apresentados como resultado da pesquisa e sugeridos para estudos posteriores de periodização. A opção por essa base específica foi feita considerando o aparente ineditismo de aplicação da História em uma pesquisa de Comunicação, além da importância óbvia desta disciplina para justificar a cronologia e as escolhas dos cortes dos acontecimentos no decorrer do tempo.

As periodizações desenvolvidas por estudos de Comunicação demonstraram que falta a base teórica adequada para justificar as escolhas feitas pelo bom senso. A boa aplicação dos conceitos e a supressão dessa carência são os aspectos que aqui se deseja evidenciar.

Os acontecimentos através do tempo levam à mudança direcional chamada História. Daqueles as significações são fundamentais, assim como seguir seu desenrolar pré-determinado, utilizando o próprio tempo como ferramenta metodológica. Com o uso desse instrumento, recorreu-se ao seu repositório de precedentes e ao presente, na tentativa de desvendar e apresentar a mudança direcional da cabodifusão brasileira.

Fica então uma indicação para qualquer tentativa de escrever o tempo pelos acontecimentos: quando uma mudança social relacionada à trama acelera ou transforma a sociedade para além de certo ponto, o passado deve cessar de ser o padrão do presente, podendo, no máximo, tornar-se modelo para o mesmo.

A poesia da História diz que a escrita coloca em cena uma população de mortos. Se for assim, a relação do presente com o passado é a primeira vela a se acender no pedido por essa ressurreição. Nesta oração pelos mortos, tão presentes no mundo dos vivos, se dá a importância da busca de razões em cada fato, acontecimento e posicionamento. A partir desse renascimento, da análise sobre o fenômeno e do recorte do tempo, foi possível obter conclusões sobre pontos de vista sagrado e profanos, respectivamente: tecnológico, econômico e político, constituindo fatos sociais totais.

1Jornalista, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas/Ufba e professora das disciplinas Teorias do Jornalismo e Oficina de Jornalismo Digital no Centro Universitário da Bahia (Fib).Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Políticas de Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: televisão por assinatura, televisão, estado da arte e teorias da comunicação. E-mail: graca_rossetto@yahoo.com.br

2A serem detalhados adiante.

3Nesse caso digo de forma secundária porque o interesse dessa classe é essencialmente econômico. No entanto, com esses fins, nada impede que o empresariado atue politicamente através de lobby ou de outras manobras em benefício do seu negócio.

4Este, no entanto, não se posiciona como um agente econômico em si, mas influencia tal estrutura através de ações políticas, sobretudo reguladoras. Neste elenco é importante assinalar a ausência dos consumidores ou de qualquer entidade representante da sociedade civil. Esta pesquisa entende que aqui não cabe tal agente porque ele não tem influência de fato sobre a estrutura econômica. Suas ações são puramente políticas e sua relação com a economia se dá como parte da estrutura de funcionamento do mercado, não de regulação.

5Este, de acordo com a teoria da inovação é ditado, sobretudo, pelos esforços de pesquisa e desenvolvimento que nascem essencialmente nas firmas privadas, mas também podem, raras vezes, partir do governo.

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Submetido: 21/03/2009, aceito: 06/04/2009