doi: 10.4013/ver.2009.23.52.01

História do jornalismo no Brasil: um balanço conceitual
History of journalism in Brazil: a conceptual review

Marialva Barbosa
mcb1@terra.com.br

Resumo. O objetivo do artigo é fazer um balanço crítico das tendências dos estudos cujo foco é a análise histórica do jornalismo brasileiro. Identificando, num primeiro momento, as recorrências teórico-conceituais desses estudos, propõe a construção de uma história da comunicação como um sistema, no qual estão envolvidas diversas questões. Entre elas destacamos a adoção dos parâmetros da teoria da história, a visualização do caráter narrativo das descrições históricas e, sobretudo, a adoção da noção de sistemas de comunicação.

Abstract. The aim of this article is to make a critical assessment of the main trends in studies on Brazilian journalism with an historical perspective. Identifying, at first, the recurrences of theories and concepts on these studies, the proposal is to construct a history of communication treated as a system, in which multiple questions are implied. Among them, one can highlight the adoption of parameters from the theory of history, the understanding of the narrative nature of historical descriptions and, above all, the adoption of the notion of communicational systems.

Nos últimos dez anos observa-se um movimento cada vez mais contundente no sentido de reconstruir a história do jornalismo brasileiro. Nos Programas de Pós-Graduação em Comunicação e em História multiplicam-se os estudos cujo foco de análise é os meios de comunicação, de maneira geral, e o jornalismo em particular.

A própria constituição da Associação Brasileira de História da Mídia (ALCAR), em 2008, reunindo centenas de pesquisadores de todas as regiões do país que se dedicam a estudar o tema e o predomínio dos estudos em torno da história do jornalismo mostram o quanto a temática faz parte das preocupações dos estudiosos brasileiros. Isso apesar da prevalência do sentido presentista da maioria dos estudos no campo da comunicação.

No VI Congresso Nacional de História da Mídia, realizado na Universidade Federal Fluminense, em maio de 2008, foram apresentados 380 trabalhos, sendo que 82 só no Grupo de História do Jornalismo. Fazendo um balanço crítico dessas pesquisas observamos que, apesar da complexificação de muitas das análises, ainda há a predominância de estudos monográficos, limitados a questões pontuais e, o mais grave, tributários de uma idéia de história cuja principal tarefa seria integralizar o passado no presente.

Pensa-se a história dos meios ou a partir de parâmetros mais amplos, sem considerar as questões pertinentes ao chamado campo da comunicação, ou pensa-se acontecimentos pontuais que emergem do passado com uma dada pretensão de explicar o presente. O passado ainda é uma espécie de lanterna iluminadora do presente em muitos desses estudos.

Claro que há pesquisas que fogem a esta abordagem estreita, mas podemos afirmar, sem medo das generalizações, que há o predomínio da idéia de história como integralização de fatos ocorridos no passado a serem descritos no presente2. Vez por outra surgem teses e dissertações inovadoras e cujo cerne da discussão centra-se, realmente, em aspectos relativos ao conhecimento dos processos históricos envolvendo o jornalismo e a comunicação de maneira mais geral. Exemplo nesse sentido é a tese de doutorado de Mário Messagi Júnior, O texto jornalístico no centro de uma revisão da história da imprensa no Brasil, que, de forma inovadora, propõe a reconstrução da trajetória histórica da Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1821), a partir das práticas jornalísticas que redundaram em singulares narrativas e textualidades3.

Outra lacuna nos estudos de história dos meios de comunicação diz respeito ao fato de as questões comunicacionais aparecerem ora como fonte, ora como personagens secundários na narrativa. Muitas vezes os estudos sobre história da imprensa e do jornalismo, em particular, balizam as análises pelos processos mais gerais da sociedade. Assim, é no bojo de uma série de transformações políticas, sociais, econômicas, culturais que os jornais (ou os meios de comunicação) são incluídos, como atores secundários. Propomos a inversão dessa lógica. Os processos comunicacionais são analisados (isto é, o texto), mas levando-se em conta evidentemente o mundo no qual se desenvolviam, ou seja, o contexto.

Muitos estudos ainda são governandos pela lógica de descobrir o que teria de fato acontecido nos tempos idos. Importa descortinar a gênese, quando tudo começou, como uma espécie de tempo fabuloso do início. Assim, discute-se, de forma acalorada, por exemplo, qual teria sido o primeiro jornal brasileiro: se o Correio Brasiliense, editado em Londres, a partir de junho de 1808, por Hipólito José da Costa, ou se a Gazeta do Rio de Janeiro, cujo primeiro número saiu da Impressão Régia, no Rio de Janeiro, em 10 de setembro de 1808. Mas essa discussão não tem o menor sentido, como também não nos interessa saber que a Impressão Régia ficava na Rua do Passeio, na casa de um tal Conde da Barca. O que essas informações promovem ao conhecimento? O que importa saber esses detalhes? Nada.

O diagnóstico que fizemos, há alguns anos, ao agrupar a maioria dos estudos históricos dos meios de comunicação em quatro eixos (Barbosa e Ribeiro, 2005), apesar dos esforços de muitos pesquisadores, ainda continua prevalecendo. Num primeiro grupo dominam os estudos cuja principal tarefa seria descrever, de maneira linear e orientada, o aparecimento e o desaparecimento de periódicos que teriam tido significação no passado, numa perspectiva essencialmente factual. O segundo conjunto de textos concentra-se em analisar as modificações nas estruturas internas dos jornais. São, em geral, trabalhos monográficos dedicados à pesquisa de um único periódico ou de um pequeno grupo deles. O principal problema localizado nessas abordagens é que a maioria das vezes não estabelecem conexões entre as características descritas e observadas nos periódicos e as transformações históricas e sociais, centrando a análise nas ações individuais dos atores envolvidos nesses processos. A história figura como espécie de pano de fundo, como conjuntura para personagens que se movimentam. Não é a história constitutiva dos sujeitos e de suas ações.

Um terceiro conjunto de textos aborda os jornais como portadores de conteúdos políticos e ideologias, não analisando a historicidade propriamente dos meios de comunicação. São trabalhos que se preocupam prioritariamente em descortinar as características discursivas dos periódicos sem enfatizar a sua historicidade nos limites específicos de cada tempo e espaços sociais. E, finalmente, um quarto grupo é composto por pesquisas que enfocam o contexto histórico no qual os periódicos vão se inserindo do seu surgimento à sua evolução e desaparecimento, desconsiderando a dimensão interna dos meios, assim como a lógica do campo, os seus aspectos técnicos, discursivos e profissionais. Novamente, na maior parte dos casos, a história aparece meramente como pano de fundo e a correspondência entre o interno e o externo é trabalhada mais descritivamente do que de maneira explicativa.

Essas perspectivas ainda continuam, em certa medida, dominantes nos estudos cujo foco é a história do jornalismo. E em nenhuma delas a dimensão da historicidade dos meios de comunicação e, do jornalismo em particular, está contemplada. Enfatiza-se ora o texto (jornal) longe do seu contexto (mundo social). Ou, de forma inversa, prioriza-se o contexto (mundo social) e insere-se, pontualmente, nesse universo o jornal como uma espécie de acidente de percurso.

Há ainda a supremacia das análises focadas num único periódico ou num espaço social considerado. Claro que essas particularizações são extremamente importantes. Não se pode generalizar os processos sociais de um contexto para o outro: há que se considerar as especificidades dos tempos e dos espaços sociais. Mas após esses estudos mais focais, há que se construir sínteses que forneçam explicações sobre a totalidade histórica dos meios de comunicação como um processo complexo. E é nisso que os estudos enfatizando os meios de comunicação como um sistema podem contribuir.

Os conceitos fundamentais da teoria da história também são extremamente importantes, do ponto de vista teórico, para quem se dedica à história dos meios de comunicação e o desconhecimento desse aporte teórico dificulta muitas vezes a abordagem. Muitas vezes a opção por não utilizar os conceitos da teoria da história é deliberada. Opta-se por produzir uma análise a partir das teorias próprias do campo comunicacional, já que no momento em que se vive a construção do saber na área ainda seria importante essa afirmação teórica, para construir um lugar de fala validado e reconhecido.

Entretanto, para nós, é impossível ter uma visão histórica sem refletir sobre temporalidade, sobre a questão dos espaços sociais (optaremos pelos particularismos ou pelas generalizações?), sobre processos e sistemas, sobre relações sociais e, por último, sobre narrativa e interpretações. A história pode trabalhar, por exemplo, com pesquisas pontuais, que se referem a um espaço social específico, mas após essa particularização é fundamental realizar, como já enfatizamos, sínteses conclusivas. Passa-se, pela teoria da história, do texto ao contexto, ou seja, dos jornais aos lugares culturais nos quais estão inscritos, com todas as particularidades das épocas históricas a que estamos nos referindo. E tudo isso não pode ser esquecido por quem quer fazer história, mesmo aquelas que necessitam de uma adjetivação para delimitar um lugar de fala.

O anacronismo que, muitas vezes, se produz em alguns estudos cujo foco é o passado é resultante também do olhar que do presente se lança aos tempos de outrora. Muitos dos nossos valores, das nossas construções míticas e idealizações podem impregnar as análises, imputando-se as formas de ver o mundo dos nossos contemporâneos aos nossos predecessores.

Há que se considerar, ainda, que o conhecimento é um valor relativo à cada época histórica. Como bem explica Agnes Heller (1993), em todas as épocas sempre houve algum conhecimento considerado maldito, que ninguém poderia saber. Mas num momento histórico seguinte, em função do grau de consciência histórica alcançado, esse mesmo conhecimento passa a ser objeto de olhares freqüentes. Mas isso não quer dizer que o conhecimento histórico produz expiação. Não queremos saber o que ocorreu no passado, nem para instaurar punições, nem para que tudo isso nos sirva de lição. A história não deve ter esse valor prescritivo.

A história como sistema

Há anos, portanto, enfatizamos a perspectiva de se estudar os meios de comunicação como um sistema (1998). Nessa história, a visualização dos processos históricos, na longa duração, é essencial. Ganha importância, o que Darnton (1990) conceitua, em relação ao livro, como circuito da comunicação: ou seja, teórica e metodologicamente essa história reinterpreta a historicidade do jornalismo a partir dos processos comunicacionais. Assim, o pesquisador deve se preocupar com o longo circuito que vai da produção da mensagem até a apropriação crítica realizada pelos leitores, interpretando todos os processos localizados neste caminho: a forma como os impressos são produzidos, as lutas por representações dos produtores de texto, as materialidades dos impressos, enfim a trajetória da produção de notícia que se encerra invariavelmente na produção crítica e na apropriação criativa realizada pelos leitores. Para fazer história do jornalismo há que se responder ao o quê era produzido (quais as características dos impressos), por quem (quem eram os jornalistas), quais eram os conteúdos, quais as materialidades envolvidas, como chegavam aos leitores, quem eram esses leitores e que interpretação crítica faziam a partir de suas visões de mundo, ou seja, das suas práticas de leitura. Leituras criativas de um mundo dado a ler e envolvido em decifrações de natureza social.

A história da imprensa deve, portanto, ser visualizada como um processo no qual essas práticas estão em relação ao todo social. Percebe-se a imprensa como integrante de um sistema comunicacional, no qual ganha importância o conteúdo, o produtor da mensagem e a forma como o leitor entende os sinais emitidos naquelas materialidades (e, no caso do jornalismo, materialidades textuais). Procura-se destacar, também, os aspectos históricos de um mundo pleno de significados, no qual se localizam os meios de comunicação. Portanto, as dimensões interna e externa são contempladas. Nesta perspectiva visualiza-se a história como re-interpretação crítica do passado num espaço social considerado e delimitado. E aqui enfatizamos uma vez mais a idéia de re-interpretação, já que a história não reproduz a integralidade do passado no presente. O que se faz é interpretar os sinais a partir das perguntas subjetivas e do olhar igualmente subjetivo que pode ser lançado em direção ao passado.

São os restos, os rastros e os vestígios desse passado que fornecem as chaves para a re-interpretação. Mas como localizar esses rastros e, sobretudo, como entender as mensagens que eles produzem? É através da memória que abrimos a janela do presente em direção ao passado. Através dos testemunhos, da materialidade das gerações e da cultura material percebemos que houve um passado e que ele deixou rastros a serem seguidos.

Portanto, três questões são chaves para a compreensão da história como processo complexo e para a reconstrução de uma história dos sistemas de comunicação: memória, rastros e interpretação.

De acordo com a proposição deste artigo podemos dizer que nos estudos sobre o jornalismo no Brasil há um esquecimento marcante dos processos históricos e comunicacionais necessários para re-interpretar o passado. O factual, que domina o mundo do jornalismo, parece migrar espontaneamente para os estudos que se dedicam às suas análises históricas: assim questões sobre a noção de gênese – qual foi de fato o primeiro periódico de um dado momento histórico – ainda tem o predomínio em muitas análises. Mas o que essa idéia de primórdios verdadeiro revela? O que ajuda na construção de uma história dos processos comunicacionais?

Outros estudos se contentam com a descrição dos conteúdos ou das práticas profissionais existentes num dado espaço geográfico sem tentar estabelecer interpretações desses processos. Avança-se pouco na direção dos porquês, se contentado muitas vezes com a simples constatação. Analisando-se a produção científica brasileira a partir das teses e dissertações defendidas em 2007, apenas para produzir um diagnóstico mais concreto, observamos que das 156 teses/dissertações cuja temática central era a relação história e jornalismo, a maioria absoluta se referia ao jornalismo como fonte. Os jornais são, assim, usados, por exemplo, para recuperar os processos educacionais de Piracicaba na Primeira República ou ainda para interpretar a educação no pensamento de Hipólito José da Costa e a ação pedagógica no Correio Braziliense na Independência do Brasil, entre 51 exemplos que encontramos4.

Quadro I

Como segundo grupo de pesquisas observa-se a história do jornalismo a partir da trajetória de figuras singulares que seriam os principais agentes da sua construção. Encontramos 28 exemplos dessas abordagens. A história do jornalismo é vista, por exemplo, a partir de “Nabantino Ramos – O modernizador das folhas” ou ainda de “Danton Jobim, o mediador de duas culturas: por uma pedagogia do jornalismo”, apenas para citar dois exemplos5.

Num terceiro grupo, figuram os estudos cujo principal foco é as coberturas e/ou o discurso jornalístico. Portanto, o que os autores fazem não é história do jornalismo, mas uma análise do enunciado da imprensa, a partir de critérios metodológicos variados. A historicidade dos processos comunicacionais mais uma vez está ausente dessas pesquisas. São exemplos dessas abordagens (IN) Diretas quae sera tamen: país do futuro, nação e herói. Movimento (s) de conciliação no discurso jornalístico sobre as Diretas Já, de Ângela de Aguiar Araújo; A visualidade invisível nas páginas dos jornais impressos. A Seleção Brasileira na Copa do Mundo 2006: a história de uma derrota, de Bárbara Castello Branco Ramos de Assumpção e a de Gisele Becker sobre A construção da imagem da prostituição e da moralidade em Porto Alegre pelo jornal Gazetinha: Uma análise dos códigos sociais segundo a Hipótese de Agendamento (1895-1897), entre 23 outros encontrados6.

Há ainda trabalhos que se preocupam com tipos particulares de jornalismo – esportivo, científico, popular, etc. – e outros tantos cuja centralidade histórica se revela pelas tipologias textuais: crônicas e cronistas de tempos idos aparecem em cena; críticos literários e outras tantas tipologias de gêneros jornalísticos vão compondo um mosaico no qual a história está ausente ainda que seja anunciada nos títulos ou nas palavras-chaves.

Observando com um olhar mais acurado o Quadro I podemos dizer que das 156 teses e dissertações defendidas, em 2007, sobre a temática história do jornalismo 13 estudos contemplaram, de fato, esta temática. E, mesmo assim, cinco deles se preocuparam com histórias particulares: veículos singulares que emergiam em estudos de caso. Em outros quatro a preocupação era com o campo jornalístico, no sentido em que define Bourdieu: a formação, os jogos identitários, as práticas desses profissionais da imprensa, sobretudo, nos últimos 50 anos, ou seja, o que definimos como questões de profissionalismo.

Apenas quatro trabalhos enfocaram os processos históricos do jornalismo de maneira mais complexa, ainda que, na maioria das vezes, dependentes da noção de gênese: uma tese sobre as revistas brasileiras no século XIX, um estudo sobre a Folha de São Paulo como indústria de mídia, um trabalho sobre as razões do aparecimento tardio da imprensa mineira e um último que tenta desvendar a gênese da imprensa no Maranhão7.

Portanto, há nas pesquisas a recorrência em procurar a gênese, o início, um instante elevado à condição de momento fundador de um processo histórico. Neste sentido, podemos dizer que o estudo histórico do jornalismo tem favorecido e se favorecido dessa idéia. Buscar o ponto inicial, o momento em que tudo começou tem sido um objetivo perseguido por historiadores e jornalistas que, ao longo de anos, vêm se dedicando a pesquisar a história da imprensa.

Influenciados pela visão tradicionalista de história, que procura em documentos que remetem a um passado que “de fato aconteceu”, esses estudos buscam também remontar a historicidade dos meios, tentando encontrar fundamentalmente momentos ou personagens fundadores.

A perspectiva é de que é possível, realmente, recuperar o passado tal como ele se deu e, a partir de documentos válidos (e se considera nesta visão os documentos oficiais, de preferência impressos), espécies de “provas”, reconstruir um percurso que só existe, de fato, como sinal.

Outra perspectiva dominante é a de considerar a história como sucessão de fatos emblemáticos e de personagens singulares. Como a singularidade do passado chega ao presente, de forma mais evidente, através daqueles que conseguiram ter voz no passado, privilegia-se nessa visão a documentação oficial e, mais do que isso, o olhar dos dominantes.

Neste sentido, a memória dos jornalistas fornece referencial fundamental e quase nunca é vista na sua singularidade memorável: ou seja, deixar para o futuro marcas da importância e da construção de uma memória válida do grupo que se quer preservar e se instaurar não apenas no presente, mas também para o futuro.

Assim, do ponto de vista de uma história do jornalismo, a visão historiográfica dominante é ainda aquela que procura na sucessão de fatos do passado a verdade do que teria acontecido, privilegiando o percurso de personagens emblemáticos. No caso brasileiro, os estudos são tributários do pioneirismo do livro de Nelson Werneck Sodré (1966), que procura estudar a singularidade do processo histórico do jornalismo (e da imprensa de maneira mais ampla) a partir de emblemas datáveis e nomeáveis (datas e personagens) do passado. O processo histórico comparece embutido nas causas e conseqüências de natureza social, econômica, política ou cultural que envelopam essa história particular. No livro pioneiro de Sodré, a noção de gênese permeia todos os capítulos, já que busca a particularidade de cada momento singular e os pioneiros neste processo, enfatizando notadamente questões de natureza política.

Claro está também que a história se constituiu como disciplina a partir dessa lógica de remontar o passado, o primordial, o emblemático e, sobretudo, “o tempo fabuloso dos começos singulares”. Percebendo-se como uma disciplina que tinha como objeto o passado, a busca era pela essência e pela verdade desse passado. Os documentos forneceriam as pistas e, sobretudo, as provas que se constituiriam em leis gerais da história. Nesse sentido, desvendar o verdadeiro início seria uma das fórmulas de se efetivar o seu percurso teórico.

Os estudos desenvolvidos sobre a questão histórica do jornalismo no Brasil são, em grande medida, tributários dessa idéia de história linear, orientada e baseada em grandes feitos, singularidades e particularidades dos grandes personagens. A maioria dos estudos realizados adota uma visão que privilegia a ruptura, produzida por fatos marcantes na qual a temporalidade linear e a sucessão dos acontecimentos dão o tom da narrativa.

Mas não há histórias tão particulares. Os jornais, os livros, o rádio, a televisão – apenas para citar os meios mais recorrentes – são sistemas de comunicação e como tal devem ser estudados. Costumo dizer que há muitas histórias para pouca abordagem histórica. Nos currículos de nossas escolas multiplicam-se as histórias dos meios, sem que se considere a abrangência do olhar histórico e, sobretudo, sem que se considere a história como narrativa que procura revelar processos sociais a partir de uma ótica interpretativa.

A noção de gênese

Dependente da formulação narrativa – toda história é uma narrativa –, os textos com pretensão de recuperar o passado tal como se deu, são também tributários, a maioria das vezes, como já observamos, da idéia de início primordial. É preciso recuperar a grande narrativa – a narrativa do tempo fundamental onde tudo começou – instaurando o início, tal como na mitologia judaico-cristã, para seguir, a partir daí, a história. As narrativas históricas, neste sentido, são dependentes da narrativa primordial do mundo: o mito de seu próprio início.

Se partirmos da premissa que a história é narrativa (não podendo ser nada além de narrativa), o que se faz quando se escreve a história é construir um texto verossímil com o objetivo de arranjar de maneira sistemática os incidentes da vida (Ricoeur, 1995, p.37).

Seguindo o pensamento de Frank Kermode (1966), há que se relacionar o desejo existente no universo do discurso de completar as narrativas a partir da inclusão do tema apocalíptico, como fim, e o da gênese, como possibilidade de começo absoluto. Assim, a história, se por um lado tem dificuldade em encerrar suas próprias narrativas, é dependente da idéia de um início fundamental: a gênese.

Os mitos do apocalipse e da gênese, segundo Kermode (1966), foram os que mais contribuíram para estruturar as expectativas judaico-cristãs ocidentais. Se a idéia de fim do mundo nos vem, no caso da escrita do Ocidente cristão, do apocalipse, que coloca um ponto final em qualquer história, também neste mesmo círculo de idéias é fundamental a construção de um tempo primordial verdadeiro: um início – a gênese – sem o qual não se poderia começar nenhuma história. A Bíblia se constitui, para o autor, como a intriga grandiosa da história do mundo e cada narrativa (intrigas literárias ou históricas) é uma espécie de miniatura dessa grande intriga, que caminha da gênese ao apocalipse.

Assim, toda história se inicia num começo primordial, numa espécie de gênese grandiosa da narrativa. Mas a história tradicional precisa ir além: é preciso instaurar o começo verdadeiro, o mito primordial dos tempos fundadores.

Essa mesma história que se inicia no momento fundador (o marco zero), caminha em direção a um fim, por meio de contingências e peripécias (Ricoeur, 1994, passim). Toda a história verossímil deve ter começo, meio e fim. É preciso que se consiga seguir a história.

Mas o fim não pode significar o apagamento da narrativa. As narrativas precisam ser construídas de maneira corrente. Assim, o final transforma-se de iminente em imanente. Constrói-se não a imagem do fim último e inexpugnável (o apocalipse), mas os últimos tempos – tempos de terror, de decadência, mas também de renovação. É dessa forma que o mito apocalíptico, na história, se transforma no mito da crise (Ricoeur, 1995, p. 35-40).

Se a crise é facilmente identificável nas narrativas literárias, também nas construções históricas o que se privilegia são os momentos que marcam rupturas: crises que significam quase sempre renovação. E no caso da história do jornalismo essa marca é considerável.

Os jornais instauram momentos particulares de uma formação histórica específica, mapeados em termos de “início incipiente”, desenvolvimento “particular”, construções de um novo tempo governado pela lógica da tecnicidade, implantação de uma imprensa de massa e, assim por diante, numa sucessão de tempos infinitos e particulares.

No caso da imprensa brasileira, depois da gênese – instaurada pela implantação da imprensa no país com a vinda da Família Real em 1808 – passa-se a um período em que a imprensa divide-se entre oficial e “oficiosa”: é o tempo da supremacia do jornalismo como representante da fala oficial do poder político. Na sucessão de tempos da história, a fundação da Aurora Fluminense, por Evaristo da Veiga, e do Jornal do Commercio (ainda o Spectador Brasileiro), em 1827, marcaria outro tempo singular: o início de uma imprensa que buscaria na construção de um discurso de cunho político a base de sua produção editorial. No momento seguinte, irrompem os debates em torno da questão republicana e abolicionista e o jornalismo será – nessas interpretações – palco fundamental para a ampliação dos grandes debates nacionais. Ampliando a nova cultura política, os jornais amplificam as discussões, construindo idéias dominantes num jornalismo de viés exclusivamente opinativo. Nesse cenário, ganha uma interpretação particular o jornalismo abolicionista: se para alguns autores sua atuação foi fundamental, para outros, com o seu poder de difusão restrito, esses jornais construíram mais uma importância simbólica do que a que de fato exerceram na sociedade. E, finalmente, nessa história sujeita a interpretações particulares emergem as tecnologias de um novo século e as transformações da imprensa na cidade, capitaneadas pelas mudanças ocorridas na alvorada do século XX8. O século XX também é objeto de profícuas e díspares interpretações e multiplicam-se as análises que particularizam os jornais e os processos singulares, em torno de nomes e periódicos de “certa importância”, como já assinalamos9.

Em todas essas reconstruções domina, portanto, a idéia de rupturas singulares, tempos particulares, processos emblemáticos: a noção de crise fornece a senha para a construção de uma história que se quer verdadeira, mas é – sempre – uma interpretação entre muitas possíveis.

Mas a história – qualquer que seja ela – precisa colocar um ponto final. Nesse sentido, cada interpretação produz um final que fica em suspenso até uma nova interpretação. O fim não é mais uma conclusão, mas a possibilidade de um eterno recomeço.

Paul Veyne num texto que já se tornou clássico, Como se escreve a história (1971), diz textualmente que a história é uma ciência por demais “sublunar” para ser explicada por leis. Assim, ao se fazer história deve-se diminuir a pretensão explicativa e, ao mesmo tempo, elevar a sua capacidade narrativa.

Mas o que leva um acontecimento a ser considerado como histórico? O que faz com que um objeto, uma particularidade, um fato passado seja alvo da reflexão histórica? Não é a singularidade do acontecimento. Para Veyne, é o fato de figurar numa intriga que faz dele um acontecimento histórico. Qualquer acontecimento, nesse sentido, pode ser histórico, cabendo ao interpretante presente elevá-lo a essa categoria a partir da sua compreensão/explicação particular. Um acontecimento histórico é aquilo que já foi narrado e pode ser re-narrado.

Mas quando há intrigas? Todas as vezes que pudemos reunir as fatalidades, as causas materiais e os acasos: uma intriga é uma mistura humana e não científica, de causas materiais, de fins e de acasos (Ricoeur, 1994, p. 244). E a ordem cronológica não é essencial. Assim, podemos concluir, construímos em ordem cronológica as intrigas da história para reproduzir uma expectativa e uma tradição discursiva, em que se começa invariavelmente pelo “tempo fabuloso do começo” e se caminha em direção a um fim sempre imperfeito.

Mas não basta tentar trazer o passado para o presente. É preciso, através dos documentos, mostrar quando tudo começou. A história passa a ser validada pela idéia de um início primordial, espécie de narrativa mítica, que instaura o momento fabuloso do começo. Um ponto zero que foi construído graças à ação humana. A idéia de gênese, portanto, carrega em si mesma um sentido supra-histórico. A gênese mais do que um modelo arquétipo, mais do que a exemplaridade indica um início primordial e singular. Nenhuma gênese – ainda que todas digam respeito a um começo exemplar – é igual à outra. Cada uma nasce de uma forma. E como tempo de antes é acima de tudo um mito no sentido mais completo do termo: ao mesmo tempo ficção, sistema de explicação e mensagem mobilizadora. Mas a idéia de gênese, além da mítica do tempo de antes, traz em si mesmo a noção de algo absoluto, completamente liberto da relação posterior de sucessão incluída na ordem do tempo. A gênese é o começo particular que instaura não apenas uma nova ordem política e social, mas o ponto zero da própria reflexão histórica.

Entre o verdadeiro e o verossímil

Mas a história lida, sobretudo, com a construção narrativa. E neste sentido deve ser vista como permanente reconstrução sujeita à re-interpretações, mudanças de enfoque, compreensão que induz a explicar. Afinal, compreender é, sempre, explicar melhor.

Distantes do paradigma de verdadeiro passado, portanto, preferimos acreditar na idéia de que a história é antes de tudo narrativa e como tal busca o verossímil e não o verdadeiro. A história é, pois, re-invenção do passado produzida pelo pesquisador do presente.

Dentro dessa perspectiva outros postulados são fundamentais. O primeiro diz respeito à característica de narrativa da história (característica essa que estamos enfatizando a exaustão ao longo desse texto). Como tal trata de processos sociais experimentados por homens e mulheres que vivem e padecem a sua própria história. Esse sentido de padecimento coloca em cena a questão da produção de sentidos realizada por aqueles que vivem cotidianamente e ao viver modificam o mundo social, que se transforma num texto a ser lido e transformado por outros sujeitos sociais.

Há que se ter em conta também que o passado buscado pelo historiador só existe como imagem, uma imagem que deixou restos no presente e sob a qual se produzirá uma re-interpretação a partir de um olhar particular: daquele que escreve a história. Mas qual é o objeto da história? Poder-se-ia de fato falar numa história particular como a história do jornalismo? Definimos história do jornalismo pelo objeto que é focado? Quais são as questões particulares desse mundo que enseja uma história particular? Por que a necessidade de tantas histórias particulares?

Há, portanto, que estabelecer postulados teóricos e metodológicos para a construção de uma história como sistema para o estudo dos meios de comunicação. São esses pressupostos de análise que constroem o que chamamos história dos sistemas de comunicação.

É possível então falar em uma história do jornalismo? Por que o jornalismo mereceria uma história? Não seria uma questão de construção de poder do campo, que assim constrói uma memória para delimitar um lugar de poder para a atividade? Toda atividade profissional merece uma história particular ou seria mais apropriado falar em uma história da comunicação como sistema?

Estamos propondo pensar a história dos processos comunicacionais como sistema, seja ela do jornalismo, da imprensa, do rádio ou da televisão. E o que seria essa história dos sistemas de comunicação?

Teórica e metodologicamente é preciso, em primeiro lugar, visualizar a comunicação como um processo no qual estão envolvidos produtores de textos, suportes, estratégias e o público que escreve, com sua leitura, parte fundamental dessa narrativa. Nesse processo tem importância o conteúdo, o produtor da mensagem, a forma como o leitor/espectador entendeu nos limites da sua cultura os sinais emitidos ou impressos. Importa também a apropriação diferenciada feita pelo leitor, sujeito social e histórico.

Tudo isso permeado pela idéia de processo, no qual a premissa mais fundamental é que a história fornece uma dimensão temporal à consciência que o homem possui de si mesmo. A história, por outro lado, como já enfatizamos, é reconstrução, interpretação onde estão incluídas necessariamente as visões de mundo do presente. Visões de mundo como forma de imaginação, texto como artefato literário, onde se reconhece o papel ativo da linguagem na criação e na descrição da realidade histórica. Afinal o passado nos chega sob a forma de mensagens, textualidades que são transformadas em contexto pela ação do pesquisador. Para isso há que se reconstruir a diversidade a partir de vestígios múltiplos e esparsos e identificar as estratégias utilizadas pelos produtores de texto para impor uma ortodoxia da leitura.

Ao ser reconstruída no presente, a partir dos rastros que o passado deixou como marca, coloca-se, em relação, a história com a questão memorável. Haverá sempre algo esquecido e algo lembrado desse passado re-atualizado. Mais do que no objeto memorável há que se pensar, pois, na dimensão de esquecimento que a história sempre evoca.

A lembrança é sempre uma espécie de imagem que se produz sobre o passado, completada pela imaginação que remonta formas que escapam nessas imagens. Lembrar é sempre atualizar, vivenciar uma imagem. O que leva ao passado é o que se imagina como imagem desse passado no presente (Ricoeur, 2000).

Portanto, o passado que recompomos como história do jornalismo está muitas vezes encharcado das simbolizações que os próprios jornalistas querem fazer crer de seu papel e de sua função na sociedade. Ao se utilizar, muitas vezes sem a crítica indispensável, as memórias desses profissionais ou as descrições sobre o mundo do jornalismo que as próprias publicações editam, temas, questões e análises fundamentais para a constituição de um lugar identitário para a própria profissão hoje são referendados. A recorrência de determinados temas enseja um lugar fundamental para o esquecimento de outros tantos.

A questão da memória mostra que o esquecimento é um dever da memória e própria a categoria memória só existe no esquecimento. Ao lembrar algo, tira-se esse algo do esquecimento para a memória. Só há lembrança, porque há esquecimento. Enquanto a memória é apresentada com a ambição à fiabilidade, o esquecimento, em contrapartida, apresenta-se como uma espécie de defeito. Portanto, o que está em foco no jogo memorável é o grau de profundidade do esquecimento e o seu estatuto epistemológico (Ricoeur, 2000).

Por outro lado, há que se considerar as múltiplas possibilidades de esquecimento, o que faz com que alguns autores proponham uma tipologia do esquecimento (pragmática), estabelecendo níveis diferenciados, mesmo em relação ao chamado esquecimento profundo: esquecimento por apagamento de restos; por persistência de restos e em decorrência da memória. A uma memória impedida corresponderia o esquecimento produzido no inconsciente; a uma memória manipulada corresponderia o esquecimento produto da narrativa; e aos usos e abusos da memória corresponderia o esquecimento comandado, numa dimensão institucional (Ricoeur, 2000).

Há um esquecimento por persistência de restos, algo que apresenta uma marca exterior, algum tipo de inscrição que reenvia ao passado. Nas análises das chamadas cobertura jornalística com sentido histórico observa-se esse tipo de esquecimento na configuração de uma dada visão do passado. São acontecimentos que ganham uma espécie de sentido supra-histórico, por ter afetado o público em outra época e, em razão disso, ter colocado uma espécie de marca afetiva, como algo que dura. A sobrevivência dessas imagens indicaria a existência de um esquecimento profundo, o que Ricoeur chama esquecimento de reserva.

Considerações finais

Por todos esses aspectos é preciso perceber a história do jornalismo como uma história das práticas culturais, identificando como em diferentes espaços sociais e momentos essa atividade é construída, pensada e dada a ler. Postulamos a construção de uma história cultural dos sistemas de comunicação a partir da possibilidade interpretativa dos múltiplos vestígios do passado que chegam ao presente. Vestígios sob a forma memorável, sob a forma de documentos oficiais, da literatura de época, de imagens apagadas pelo tempo, mas que indicam formas de apropriação das mensagens dos meios de comunicação de maneira singular.

Ao particularizar a questão cultural estamos considerando ser a interpretação que possibilita visualizar como os homens do passado consideravam as múltiplas representações da imprensa. A expressão dos indivíduos neste tipo de abordagem ocorre sempre dentro de um “idioma geral” fornecido pela cultura. Cabe ao historiador descobrir a dimensão social do pensamento e extrair significados do documento. Nesse tipo de abordagem, passa-se do texto ao contexto e novamente ao texto, procurando abrir caminhos “através de um universo cultural estranho” (Darnton, 1986, p. XVII-XVIII). Enfim, é a cultura que formula maneiras de pensar.

É preciso interpretar o complexo movimento dos atores sociais que existem num dado momento e lugar, movimento sempre inscrito em práticas. Não é o social, o institucional ou o cultural que produz a interpretação histórica, mas as práticas humanas lidas pelo historiador do presente. Práticas que constroem sentidos e cujos processos são objetos de análise.

O modo como os seres humanos pensam e comunicam suas existências não pode ser considerado um nível de análise à parte, já que a premissa é que “as próprias representações do mundo social são os componentes da realidade social” (Chartier, 1990). Portanto, o econômico, o social ou o político não são anteriores à cultura, nem a determinam. As relações econômicas, sociais e políticas são campos da prática cultural e da produção cultural, já que o que está em jogo é a experiência humana. O que se procura é estabelecer conexões entre cultura e universo social, interpretando as representações que forjam as práticas existentes no cotidiano, em suas múltiplas correlações com o econômico, político e social. No caso do jornalismo interessa visualizar os processos que, na longa duração, formaram as representações em torno do fazer jornalístico.

O objetivo não deve ser simplesmente alinhar os jornais que apareceram e desapareceram. Nem tentar explicar de fora – pelos aspectos políticos e econômicos – os movimentos da imprensa. Mas interpretar os múltiplos percursos da imprensa brasileira que possibilitaram o seu amalgamento com a vida cotidiana.

Não estamos interessados em recuperar a história tal como ela se deu, na sua inteligibilidade absoluta, até porque não acreditamos nela. Não estamos interessados numa história linear, orientada e baseada em grandes feitos e singularidades dos grandes personagens. A história trabalha com rupturas, mas também com continuidades. Fazer história do jornalismo não é, pois, se concentrar apenas nas modificações e na estrutura interna dos jornais. Afinal, a história não é mero pano de fundo para as análises da imprensa. Existe uma fórmula própria de considerar a comunicação como sistema complexo e particularizar a sua historicidade nesse processo.

Construir a história do jornalismo é, pois, fazer o mesmo movimento da “escrita da história”. É perceber a história como processo complexo, no qual estão engendradas relações sociais, culturais, falas e não ditos. Compete ao historiador perguntar pelos silêncios e identificar no que não foi dito uma razão de natureza muitas vezes política.

e por um lado pensamos a história como epistéme (conhecimento verdadeiro) que se opõe à doxa (simples opinião), é preciso inserir o aspecto ficcional da narrativa histórica. Quando enfatizamos o aspecto ficcional não quer dizer que o passado não tenha se dado: o que está se destacando é a característica de relato de um texto escrito por um narrador do presente, inserido num mundo completamente diverso daquele que está interpretando.

O produto dessa reconstrução será sempre um discurso carregado de significados. Há que se considerar também que cada época está imersa num grau de consciência histórica que foi sendo construído pelos sujeitos que “vivem e padecem sua própria história”. Se ao construir um texto que lança um determinado olhar sobre o passado estamos tentando produzir conhecimento ou epistéme, por outro lado não se pode esquecer que o que se reconstrói é sempre, como diz Heller (1993), os problemas da vida e da consciência cotidianas. O que cada pesquisador faz é tornar explícito o implícito; publicizar o que seria secreto e fornecer uma coerência ao que em princípio poderia ser classificado como incoerente. Tudo isso sem a pretensão de transformar o passado em presente, mas enxergando o passado como vestígio significante que pode chegar ao mundo de hoje (Heller, 1993).

A partir dos sinais que chegam até o presente, cabe tentar compreender a mensagem produzida no passado dentro de suas próprias teias de significação. São esses vestígios, que aparecem como documentos e como ato memorável (no qual está incluída a memória do próprio narrador / pesquisador), que permitem reconstruir a história.

Portanto, estamos afirmando que, embora nos estudos históricos do jornalismo prevaleça uma perspectiva factual, no qual os acontecimentos singulares – e estes são normalmente o aparecimento ou o desaparecimento de novos veículos de comunicação – fornecem o pano de fundo indispensável, há que se avançar no sentido de complexificar as análises na direção de uma história como processo comunicacional.

1Doutora em História pela UFF, com pós-doutorado em Comunicação pelo LAIOS/CNRS, Paris, França, 1999. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e do Departamento de Estudos Culturais e Mídia. Pesquisadora do CNPq. E-mail: mcb1@terra.com.br

2Exemplo de pesquisas que fogem a esta abordagem são as realizadas pelos pesquisadores da CPDOC/FGV, alguns estudos realizados no Laboratório de História Oral (LABHOI) do Programa de Pós-Graduação em História da UFF, as realizadas pelo Grupo de Pesquisa sobre Memória do Jornalismo, liderado por Ana Paula Goulart Ribeiro, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. Exemplar são também os estudos sobre história dos meios e das práticas sociais de leitura no século XIX, realizados pelos pesquisadores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da UERJ. Citamos, como exemplo, os trabalhos de Marco Morel sobre a imprensa do século XIX. Diversas teses de doutorado nos últimos dez anos também fugiram dessa perspectiva estreita, como por exemplo, a de Carla Siqueira (Sexo, crime e sindicato. Sensacionalismo e populismo nos jornais Ultima Hora, O Dia e Luta Democrática durante o segundo governo Vargas (1951-1954), defendida no Doutorado em História da PUC-Rio, em 2002), a de Ana Paula Goulart Ribeiro, sobre Imprensa e História no Rio de Janeiro dos anos 50, defendida no Doutorado em Comunicação da UFRJ, em 2000 e a de Marco Antonio Roxo da Silva, Jornalistas prá quê? Militância Sindical e o drama da identidade profissional, defendida em 2007 no Doutorado em Comunicação a UFF, apenas para nos referir a algumas. No âmbito do Laboratório de Mídia, Memória e História do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense também estão sendo desenvolvidas pesquisas que procuram complexificar essa relação história e comunicação. Citamos os trabalhos de Cássia Louro Palha, que resultou na tese de doutorado em Comunicação sobre a trajetória histórica do Globo Repórter, de Letícia Cantarela Matheus, sobre as complexas relações entre tempo, memória e jornalismo, de José Cardoso Ferrão Neto, sobre mídia, oralidade e letramento no Brasil, de Silvana Louzada sobre a modernização do fotojornalismo carioca nos anos 1950 e de Michele Vieira, sobre os processos de constituição tecnológica e cultural do rádio no Brasil, a partir da análise da primeira década da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.

3Tese de Doutorado em Comunicação defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação na UNISINOS, sob orientação de Christa Berger, e defendida em janeiro de 2009.

4Estamos nos referindo, neste caso, à dissertação de Clarice Pavan Chiareli, A Escola Complementar de Piracicaba Segundo o Jornal Local Gazeta (1897-1911): Uma Análise dos Noticiários Cotidianos à Luz dos Discursos da 1ª República, defendida em 2007 no Mestrado em Educação a Universidade Metodista de Piracicaba e de Fernanda Regina Cinque, também de 2007, e do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Maringá, intitulada A educação no pensamento de Hipólito José da Costa: a ação pedagógica do Correio Braziliense no processo de Independência do Brasil, cf. Banco de Teses e Dissertações da CAPES: http://servicos.capes.gov.br/capesdw/Teses.do.

5Cf. as teses de doutorado de Laércio Pires de Arruda. Nabatino Ramos – o modernizador das Folhas. São Bernardo do Campo: UMESP, 2007 e de Márcia Furtado Avanza. Danton Jobim, o mediador de duas culturas: por uma pedagogia do jornalismo. São Paulo: ECA-USP, 2007.

6A primeira defendida, em 2007, no Mestrado em Memória Social da UNIRIO; a segunda defendida, também em 2007, no Mestrado em Comunicação da PUC-Rio; e a terceira, no mesmo ano, no Doutorado em Comunicação da PUC-RS.

7São eles a dissertação de mestrado de Antonio Carlos Guerino, O Mercado e a Indústria da Mídia: o caso Folha de São Paulo (Casper Líbero, 2007); a tese de doutorado de Carlos Roberto da Costa, entitulada A revista no Brasil, o século XIX” (ECA-USP, 2007), a dissertação de mestrado de Roseane Arcanjo Pinheiro sobre a “Gênses da Imprensa no Maranhão (UMESP, 2007) e a tese de doutorado de Jairo Faria Mendes, O silêncio das Gerais: o nascimento tardio e a lenta consolidação dos jornais mineiros (UMESP, 2007).

8Sobre esse modelo de historicidade cf. o próprio livro de Nelson Werneck Sodré e o trabalho também exaustivamente citado de Juarez Bahia (1990), apenas para citar duas das obras mais conhecidas.

9São inúmeros os trabalhos que se dedicam a estudar a imprensa brasileira no século XX. Para uma perspectiva particular, cf. Barbosa (2007).

BAHIA, J. 1990. Jornal história e técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo, Ática, vol. 1, 445 p.

BARBOSA, M. 1998. Por uma história dos sistemas de comunicação. Contracampo, 1:27-45.

BARBOSA, M. 2007. História cultural da imprensa. Brasil (1900-2000). Rio de Janeiro, MauadX, 267 p.

BARBOSA, M.; RIBEIRO, A.P.G.. 2005. Por uma história do jornalismo no Brasil. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Rio de Janeiro, 2005. Anais... Rio de Janeiro, Intercom. 1:1-15.

CHARTIER, R. 1990. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 244 p.

DARNTON, R. 1990. O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo, Cia das Letras, 330 p.

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HELLER, A. 1993. Uma teoria da história. Rio de Janeiro, Brasiliense, 402 p.

KERMODE, F. 1966. The sense of an ending, studies in the theory of fiction. Londres, Oxford, Nova Iorque, Oxford University Press, 444 p.

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RICOEUR, P. 2000. L´histoire, l´mémoire et l´oubli. Paris, Editions du Seuil, 690 p.

RICOEUR, P. 2001. O passado tinha um futuro. In: E. MORIN. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, p. 369-378 .

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VEYNE, P. 1998. Como se escreve a história. Brasília, UNB, 285 p.

WEINRICH, H. 1973. Le Temps. Paris, Seuil, 348 p.

Submetido: 14/02/2009, aceito: 23/02/2009