doi: 10.4013/ver.2009.23.53.04

Por uma comunicação estética: Bataille e a experiência interior
For an aesthetic communication: Bataille and the inner experience

Maurício Liesen
mauricioliesen@gmail.com

Resumo. Este ensaio busca uma reflexão da experiência estética sob a perspectiva comunicativa esboçada pelo filósofo francês Georges Bataille. A intenção é provocar um debate dentro do campo das estéticas da comunicação em torno de uma comunicação estética, sensível, pré-discursiva e trágica, a partir da experiência interior e do erotismo.

Abstract. This paper aims to reflect the aesthetic experience from the communicative approach outlined by French philosopher Georges Bataille. The intention is to provoke a debate within the field of Communications Aesthetics about an aesthetic, sensitive, pre-discursive and tragic communication – from the inner experience and the eroticism.

O excesso de pranto ri. O excesso de riso chora
William Blake

Em meio às recentes discussões sobre a constituição do campo das estéticas da comunicação2, parece-me ainda reticente o debate sobre as formas ou as possibilidades de se conceber uma comunicação estética. Da mesma maneira, é incipiente a abordagem dos caracteres comunicativos da experiência estética, a qual demandaria uma perspectiva dos próprios estudos do chamado campo comunicacional. Debate talvez mesmo anterior à própria reivindicação de “uma” estética da comunicação. Mas o que pretendo dizer com a expressão “comunicação estética”? Preciso de estacas. Ou melhor, de membranas.

Enquanto boa parte das discussões estéticas na comunicação se ocupa da descrição e da atribuição de sentido a objetos midiáticos (aproximando-se, portanto, mais a uma poética3), ainda é lacunar a ligação das concepções da comunicação como algo mais próximo do sensível – e da comunhão social – aos discursos no campo da estética que durante o século XX voltaram a se ocupar com o sentir, afinados com sua etimologia e mais afastados de um debate sobre os objetos artísticos, caro à teoria e à filosofia da arte.

Pensar uma comunicação sensível, sensória, corporal, afetiva e empática, que escapa facilmente às normas discursivas, é pensar em eventos que deslocam nossa capacidade de apreensão, nossa capacidade de nos apossarmos das coisas do mundo como um objeto exterior de conhecimento.

É se situar nas problemáticas entre pathos e logos; racionalismo e irracionalismo; imanência e transcendência; corpo e mente. A comunicação estética, portanto, situa-se num ‘entre’: comunicação instaurada não apenas no campo da linguagem, mas também nos sentidos. Comunicação como fusão: elemento-chave da experiência estética.

Numa primeira parada, dois caminhos. De um lado, autores que buscam no conhecimento sensível aquilo que a razão não consegue “agarrar”, que flertam com o “lado obscuro da lua”, com o outro lado da lógica (Nietzsche, Bataille, Blanchot, Foucault, Deleuze). Quebra do projeto iluminista, rompimento com o discurso, experiência interior, o sensível como algo indizível, o irrepresentável, o sublime, a experiência trágica e transformadora. Essas são algumas palavras que acompanham os andarilhos. No segundo caminho, o pathos é razoável, ou seja, todo pathos tem seu logos e vice-versa (Herman Parret, Martin Seel, John Dewey, Wolfgang Iser). A experiência estética é destituída de todo caráter transformador, transgressor. Ela é cotidiana, mediada, discursiva. Duas dimensões: trágica e pragmática. Dois pólos. Mas é no negativo que este texto deve pairar. Ora atraído, ora repelido.

É interessante notar que os próprios autores que se debruçaram sobre a questão do sentir, raramente reivindicaram a palavra estética. Esta discussão se deu, grosso modo, com pensadores que trabalharam no eixo da diferença, entendida como uma não-identidade, ocupada com caracteres insólitos e ambíguos da experiência. A estética é gradativamente afastada da metafísica e do transcendental, aproximando-se, portanto, da experiência sensual e da imanência, como um saber essencialmente mundano (Perniola, 1997, p. 155).

Tal foi o caso do pensador francês Georges Bataille, que teceu uma forte crítica desferida aos chamados delírios da razão: um “iluminismo excessivo” que não mais faria sentido após as duas Grandes Guerras. Ele aponta o caráter autoritário e castrador da “febre da razão”, assim como o fez Nietzsche, Freud e Foucault. “Só que Bataille percebe no centro do domínio do visível um ‘resto’ obscuro, cujo potencial erótico-sedutor catalisa a vontade de saber e a vontade de poder” (Schølhammer, 2007, p. 85).

Para ele, o próprio excesso (base do seu pensamento) estaria fora da razão – entretanto, constituinte das comunidades humanas: as pessoas criam para gastar e, se elas retêm as coisas que elas produzem, é somente para permitir que continuem vivendo e, assim, destruindo. O surgimento da atividade estética é fruto do dispêndio, do excesso, que caracteriza o Homo ludens: a arte, o jogo e a festa como opostas ao senso comum de utilidade. Atividades que, ao menos primitivamente, têm o fim em si próprias: o luxo, os lutos, as guerras, os cultos, os jogos, os espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (Bataille, 2005). “A arte e o jogo ultrapassam o trabalho da mesma maneira que o sagrado ultrapassa a magia e que o erotismo ultrapassa a finalidade reprodutiva da sexualidade” (Schølhammer, 2007, p. 91).

Com sua abordagem heterológica, Bataille procura tocar aquilo que escapa à razão, como uma tentativa de romper com todo intelectualismo, racionalismo e cognitivismo. A heterologia reverte o processo filosófico, o qual deixa de ser um instrumento de apropriação e serve à excreção, entendida como o desconhecido, como o que escapa, como aquilo que quando se conhece, deixa de existir: “Tão logo o esforço pela compreensão racional termina em contradição, a prática de escatologia intelectual requer a excreção dos elementos inassimiláveis”4 (Bataille, 2006, p. 99). Excreção entendida como aquilo que não pode ser sistematizado. Oposta à necessidade de “querer ser tudo”.

A valorização do logos, em detrimento do pathos, provoca o que ele chama de “achatamento do individuo”, que sem mais as possibilidades de experiências místicas (fim das grandes utopias e desvalorização dos sistemas religiosos) sente a vontade de se perder, de escapar do isolamento. A busca de experiências-limite, portanto, é uma contestação, que para Bataille está estritamente ligada à liberação do poder das palavras, do discurso. Como ele mesmo escreve, “subsiste em nós uma parte muda, furtada, inapreensível. Na região das palavras, do discurso esta parte é ignorada. Por isso ela geralmente nos escapa. Se vivemos, sem contestar, sob a lei da linguagem, estes estados em nós estão como se não existissem” (Bataille, 1992, p. 22).

Ao se observar atentamente sua heterologia, é possível ver pulsar a problemática da comunicação como um dos eixos centrais – senão como o eixo central (Joron, 2008): “A existência é comunicação [...] e toda representação da vida, do ser, e geralmente ‘de qualquer coisa’, deve ser revista a partir daí” (Bataille, 1992, p. 104). Sua própria abordagem interdisciplinar – flertando com a literatura, a filosofia, a antropologia, a sociologia e a economia – atrai o olhar para um possível diálogo com os estudos em comunicação. Mais ainda: possibilita-nos a pensar a comunicação não como troca, mas como zona anfíbia, ambígua, um ponto de indiscernibilidade entre a palavra e o silêncio, o sentido e o não-sentido. Uma comunicação compreendida no seu excesso, no transbordamento, na fusão. Por isso, potencialmente estética. Realidade trágica da comunicação: o riso, o erotismo, a violência, a morte, a exuberância. A comunicação implica um estado de graça nos que a vivem - um momento de soberania. Não o que se pode conceituar. Mas o que nos cativa. O desejo de comunicar é contrário ao desejo de apreender:

Esses momentos de intensa comunicação que temos com o que nos circunda – que se trate de uma fileira de árvores ou de uma sala ensolarada – são em si mesmos inapreensíveis. Somente usufruímos deles na medida em que comunicamos, em que estamos perdidos, desatentos. Se deixamos de estar perdidos, se nossa atenção se concentra, deixamos igualmente de comunicar. Procuramos compreender, captar o prazer: ele nos escapa (Bataille, 1992, p. 149).

O objetivo deste ensaio, a partir do pensamento batailleano, é apontar caminhos para se pensar uma comunicação estética, ou antes, uma comunicação sensível, que questione os modelos tradicionais de emissor-meio-receptor e ao mesmo tempo crie figuras que nos permitam conceber uma comunicação negativa, uma não-comunicação, uma transgressão da finalidade comunicativa a partir de uma comunicação-limite: um “não” aqui utilizado no sentido batailleano, que atua no discurso para produzir sua perdição, arrastando o sentido ao não-saber, entre a palavra e o silêncio: o “não” não é a afirmação invertida da comunicação, mas um ‘entre’, permeado de elementos discursivos e não discursivos.

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!
Eduardo Galeano

Partilha, continuidade, fusão. São palavras-irmãs do sentido batailleano de comunicação. O próprio papel da comunicação é apresentado, na sua obra mais próxima da problemática comunicativa, A Experiência Interior (1992), como sendo o da fusão do objeto com o sujeito, ou seja, contrária à separação cartesiana do corpo/mente, do sujeito/objeto, de um observador exterior ao mundo. Esse desejo de fusão, de continuidade, parte de um princípio de insuficiência que nasce de uma vontade trágica de “querer tornar-se tudo”.

Considerando sua ontologia explicitada n’O Erotismo (1987), os seres humanos são seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível, mas com a nostalgia da uma continuidade perdida. Continuidade produzida a partir da união uterina. É essa nostalgia que alimenta o desejo de comunicação, entendida também como relação erótica.

Para Bataille, o que está em jogo no processo comunicativo é a superação do isolamento do ser por um sentimento de continuidade profunda. Mas isso implica uma violência, uma violação do ser constituído em sua descontinuidade. “Toda a concretização erótica tem por princípio a destruição de uma estrutura do ser fechado” (idem, p. 17). Daí a importância de conceitos como desnudamento e obscenidade: “A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada” (ibid.). O que está em jogo é sempre dissolução das formas constituídas. “O ser não é somente identidade, mas antes ruptura ou desequilíbrio, a repentina mudança de níveis: o ser é diferença violenta, precariedade e heterogeneidade em relação a um dado grupo estável” (Stoekl, 2006, p. 21).

Descontinuidade percebida com a presença da morte: eu permaneço, mesmo que você morra. Mas ao mesmo tempo, “a morte revela a mentira da descontinuidade” (Bataille, 1987, p. 91). A morte, a grande noite, o desconhecido, é experiência radical de continuidade: “Os seres descontínuos que são os homens se esforçam para continuar na descontinuidade. Mas a morte, pelo menos a contemplação da morte, entrega-os a experiência da continuidade” (Bataille, 1987, p. 78). Entretanto, não é só a morte que pode recuperar essa continuidade. Mesmo que momentaneamente, o sentimento de continuidade – de êxtase – pode acontecer em momentos específicos de comunicação. A própria superação do isolamento – o desejo de continuidade – é regulada por uma “lei” de comunicação.

Momentos de supressão do limite: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o erotismo sagrado. “O sentido último do erotismo é a fusão” (Bataille, 1987, p. 121). No primeiro, a continuidade dos corpos e a perdição dos seres no gozo, a “pequena morte”. A atividade sexual é concebida como uma fissura, na qual “os dois seres estão ao mesmo tempo abertos à continuidade. Mas nada subsiste disso nas consciências vagas: depois da crise, a descontinuidade de cada um dos dois seres está intacta. Trata-se, ao mesmo tempo, da mais intensa e insignificante crise” (ibid, p. 96).

No segundo, a paixão “prolonga no campo da simpatia moral a fusão dos corpos entre si” (ibid., p. 18). Mas esse prolongamento implica uma angústia: a procura de uma impossível continuidade duradoura. “A sexualidade e a morte são apenas os momentos intensos de uma festa que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres, uma e outra tendo o sentido de desperdício ilimitado que a natureza executa contra o desejo de durar que é próprio de cada ser” (ibid., p. 58).

Por sua vez, a experiência mística introduz a continuidade por outros meios que não o erotismo dos corpos e dos corações: uma possibilidade de continuidade com o mundo através das coisas, ambientes, momentos. A comunicação necessariamente implicaria uma superação das questões utilitárias. E o erotismo, como uma forma de comunicação, seria “a experiência contraditória da proibição e da sua violação: suspende a primeira sem a afastar completamente e, por conseguinte, deixa de poder assumir o caráter de um regresso à natureza ou da reconstituição de uma totalidade positiva” (Bataille, 1987, p. 19).

O erotismo místico, como fenômeno comunicativo, situa-se dentro daquilo que Bataille chamou de experiência interior. Experiência interior não é compreendida como consciência de si, mas como sentimento de si – mesmo que nunca apenas subjetivo5 . “O sentimento de si varia necessariamente na medida em que aquele que o experimente isola-se em sua descontinuidade” (ibid., p. 93).

A experiência interior é a crise do ser – algo comunicável, mas incomunicável: “o ser tem a experiência interior do ser na crise que o põe à prova, é a atuação do ser numa passagem que vai da continuidade à descontinuidade, ou da descontinuidade à continuidade” (ibid., p. 95).

Esse movimento lembra a constituição da experiência estética proposta por Hans Ulrich Gumbrecht (2006). Para ele, o conteúdo arrebatador da experiência estética sempre é produzido a partir da relação entre os efeitos de sentido (conceitos) e os efeitos de presença (percepção), ora havendo a predominância do primeiro, ora do segundo. E como efeito imediato, há, por fusão entre o sujeito e o objeto, a possibilidade do retorno ao contado com o mundo, abandonando, num átimo, o transcendental. A experiência estética, portanto, recuperaria as dimensões espaciais e corporais da nossa existência, em meio a um cotidiano cartesiano, atendendo aos nossos desejos de presença. Sentimento de ser parte do mundo físico das coisas. Mas um sentimento que será sempre a conquistar, pois os efeitos de sentido estão sempre aí para nos fazer esquecer o nosso contato físico com o mundo. Para Gumbrecht, são as epifanias que nos arremessam os rastros do real, nos fazem perder a busca da palavra apropriada e nos arrebatam com a presença das coisas do mundo.

Para Bataille, “a experiência não pode ser comunicada se os laços de silêncio, de desaparecimento, de distância, não mudam aqueles que ela coloca em jogo” (1992, p. 36). Após a experiência interior, o indivíduo é um outro. Ele é tomando por um estado de arrebatamento. Sua heterologia erótica marcaria também uma necessidade de volta de contato com o mundo. “Na experiência o enunciado não é nada, senão um meio, e ainda, não somente um meio, mas um obstáculo; o que conta não é mais o enunciado do vento, mas o vento” (Bataille, 1992, p. 21). Poderíamos pensar a experiência interior como uma experiência de um ser-no-mundo, como um mundo que não está diante de um sujeito contemplador, mas à mão, ao toque, imanente e material.

O sentimento de já não querer ser tudo, de assumir o acaso, a volatilidade e a multiplicidade da existência afasta a experiência interior da ascese ou da experiência mística, que prevêem certo sentimento de totalidade e de privações – ao contrário da experiência que é provocada pelo excesso. Os sentidos, assim, “não são demonstrados logicamente. É preciso viver a experiência [...] é somente a partir de dentro, vivida até o transe, que ela aparece unindo o que o pensamento discursivo deve separar” (Bataille, 1992, p. 16).

Como escapar então da discursividade? Talvez aí esteja a angústia que nos refere o autor. “O desespero é simples: é a ausência de esperança, de qualquer engodo” (ibid., p. 44). Para ele, o mundo se configura sob os signos da angústia e do êxtase. “A experiência interior é o êxtase; o êxtase é aparentemente, a comunicação, opondo-se ao achatamento sobre si. Chegamos ao êxtase através da contestação do saber” (Bataille, 1992, p. 20).

Essa contestação pode ser aproximada ao ethos Neutro, proposto por Barthes (2003) – mesmo que, por outro lado, se tornem opostas. O Neutro é um desejo: desejo de uma nova postura. Impelida por uma necessidade: necessidade de superação de modelos impositivos, de conflitos, de crises. O Neutro é um Wu-wei (o não-agir): “É o que trapaceia, esquiva-se a, desorienta o querer do viver” (ibid., p. 362). Ao mesmo tempo é entendido como criação e como força que busca burlar/romper os paradigmas dos mais variados fatos do discurso. A aproximação com a experiência interior se daria na proposta de rompimento com paradigmas, projetos, ao mesmo tempo em que se torna algo que escapa a qualquer tipo de conceitualização, pois se aproxima mais de um sentir. Experiência interior como “aquilo que o homem sabe pelo fato de ser” (Bataille, 1992, p. 12): apreensão do estranho, do desconhecido. Entretanto, enquanto o Neutro barthesiano possui um caráter positivo, de transformação e resistência a um paradigma, a experiência interior assume um caráter negativo, pois se torna uma experiência extrema, um sentimento de “cessar de querer ser tudo”, de “abolir o poder das palavras, logo, do projeto” (ibid., p. 30). Mesmo assim, Bataille não ignora a importância da razão discursiva para conduzir a experiência interior: “Sem o apoio da razão, nós não atingiríamos a ‘incandescência sombria’” (ibid., p. 53). A comunicação sensível é tanto silêncio, quanto linguagem. A comunicação deve ser vivida e não ponderada. Mas a possibilidade de atravessar o abismo entre o eu e o tu é criada através da linguagem.

A experiência interior atingiria a fusão do objeto e do sujeito, sendo, como sujeito, não-saber, como objeto, o desconhecido. Mas para atingir o êxtase é necessário dramatizar. Dramatizar é se obrigar a sentir, a estar nu. “Se não soubéssemos dramatizar, não poderíamos sair de nós mesmos. Viveríamos isolados e achatados. Mas uma espécie de ruptura – na angústia – nos deixa à beira do pranto: então nos perdemos, esquecemo-nos e comunicamos com um além inapreensível” (ibid., p. 19). Liberação do poder das palavras.

A plena comunicação, que é a experiência tendendo ao ‘extremo’, é acessível na medida em que a existência se despoja sucessivamente dos seus meios-termos: daquilo que procede do discurso e, depois, se o espírito entra numa interioridade não discursiva, de tudo o que retorna ao discurso pelo fato de que se pode ter dele um conhecimento distinto. [...] A existência comunica-se na maioria das vezes, sai de sua ipseidade ao encontro dos semelhantes. Há comunicação de um ser a outro (erótica) ou de um a vários outros (sagrada, cômica) (Bataille, 1992, p. 124).

Partilha. Não se pode ter uma experiência interior – a comunicação sensível – sem a comunidade daqueles que a vivem. “A comunicação é um fato que não se acrescenta de modo algum à realidade humana, mas a constitui” (Bataille, 1992, p. 32). É do sentimento de comunidade que nasce o desejo de comunicar. “Na experiência, não há mais existência limitada. Um homem não se distingue em nada dos outros: nele se perde o que em outros é torrencial. O preceito tão simples: ‘seja esse oceano’, ligado ao extremo, faz ao mesmo tempo do homem uma multidão, um deserto” (ibid., p. 35). Não existe autonomia sem dependência afetiva diante de um grupo. Daí deriva seus três princípios da comunicação: (i) a composição transcende os componentes; (ii) existe uma autonomia relativa entre os componentes; (iii) é presente uma vontade de autonomia plena que busca romper o primeiro principio, mas ela é um logro – é impossível escapar à composição social.

O sentimento de continuidade provocado pela experiência interior se dá na ausência de particularidades. “Se um conjunto de pessoas ri de uma frase, revelando um absurdo, ou de um gesto distraído, elas são percorridas por uma corrente intensa de comunicação. Cada existência isolada sai de si mesma, devido à imagem, traindo o erro do isolamento imobilizado” (Bataille, 1992, p. 102). Comunicação como contágio. Ondas no mar. Desejo de se perder na multidão.

Viver significa, para ti, não somente os fluxos e os jogos fugidios de luz que unificam em ti, mas as passagens de calor ou de luz de um ser a outro, de ti ao teu semelhante ou do teu semelhante a ti: as palavras, os livros, os monumentos, os símbolos, os risos são apenas caminhos desse contágio, dessas passagens (ibid., p. 101).

O sacrifício, a perda, o acaso, o erotismo – termos heterogêneos e sem função social definida – permeiam nossas “entrexistências”. O cotidiano do homem comum também é marcado pela dor e pela alegria, pela angústia e pelo êxtase. A experiência interior também constitui a vida mundana. É algo que se aproxima da concepção de cotidiano de Maurice Blanchot (2007): o cotidiano, como ritmo e presença, é algo que escapa. O cotidiano é difuso. “Não é o ‘momento nulo’ que esperaria o ‘momento maravilhoso’ para que este lhe dê um sentido ou o suprima ou o suspenda” (Blanchot, 2007, p. 240). A busca do conhecimento do cotidiano é uma busca pela imediaticidade. “Queremos estar ao corrente de tudo o que se passa no instante mesmo em que passa e se passa” (ibid., p. 238). O autor também escreve sobre a necessidade do ruído (rádio ligado sem que estejamos prestando atenção) como uma “promessa indefinida de comunicar, garantida pelo vai-e-vem incessante de palavras solitárias” (Blanchot, 2007, p. 238). No mesmo tom, ele afasta a possibilidade de apreensão do cotidiano pelos meios de comunicação. O cotidiano “pertence a uma região em que não há nada a conhecer, assim como é anterior a toda relação, uma vez que já foi sempre dito, permanecendo ao mesmo tempo informulado, quer dizer, além da informação” (ibid., p. 239). Estariam aí os ecos dos gritos contra a racionalidade e a necessidade de apreensão de tudo, desferidos por Bataille? “A via da comunicação (laço profundo dos povos) está na angústia (a angústia, o sacrifício unindo os homens de todos os tempos)” (Bataille, 1992, p. 105).

O extremo do possível. O excesso do pranto que ri. O excesso do riso que chora. O extremo só é atingido quando é comunicado (o homem é múltiplo, a solidão é o vazio, a nulidade, a mentira). “Quando o extremo está lá, os meios que servem para atingi-lo não estão mais lá” (ibid., p. 56). A poesia, o riso, o êxtase não nos levam a algo que não seja eles mesmos. Comunicação estética como o excesso. O diálogo como mistificação voluntária e provisória. Comunicação como uma onda afetiva. Desejo de se perder, perder os limites. Comunicação pelo desejo de comunicar. “No langor, na felicidade, a comunicação é difusa: nada se comunica de um termo a outro, mas de si mesmo a uma extensão vazia, indefinida, onde tudo se afoga” (Bataille, 1992, p. 128).

Comunicação como tragédia. Sabemos que no fim, a continuidade nos será negada, interrompida. “A vida vai se perder na morte, os rios no mar e o conhecido no desconhecido. O reconhecimento é o acesso ao desconhecido. O contra-senso é o resultado de cada sentido possível” (ibid., p. 109).

Comunicação como êxtase e sacrifício. “O sacrifício é a loucura, é a renúncia a qualquer saber, a queda no vazio, e nada, nem na queda nem no vazio, nada é revelado, porque a revelação do vazio é somente um meio de cair mais profundamente na ausência” (ibid., p. 58). O não-saber desnuda e comunica o êxtase.

Arrebatamento como espelho: “A angústia supõe o desejo de comunicar, isto é, de me perder, mas não a resolução inteira: a angústia testemunha do meu medo de comunicar, de me perder” (ibid., p. 59).

Êxtase como sensação de um efeito vinda de fora. Êxtase de se sentir diluído nos espaços, no mundo. “Um homem entra na dança porque a dança o obriga a dançar” (ibid., p. 108). “Não há mais sujeito-objeto, mas ‘brecha escancarada’ entre um e outro e, na brecha, o sujeito, o objeto são dissolvidos, há passagem, comunicação, mas não de um a outro: um e outro perderam a existência distinta” (ibid., p. 66).

São por meio dessas imagens, figurações, citações, cintilações, que pretendo ressaltar o quão estética é a discussão da comunicação em Bataille. Um modo de comunicação que não apenas é provocado pela arte, mas também por situações banais, corriqueiras. “A comunicação entre duas pessoas possui, de fato, o poder de sobreviver à separação momentânea. [...] O conhecimento de um ser por um outro é apenas um resíduo, um modo de relação banal que fatos de comunicação essenciais tornam possível” (Bataille, 1992, p. 90). Entretanto, a dramatização, típica da arte, compõe toda a artificialidade do mundo, da qual nasce o êxtase. Por isso, ele afirma que “é inútil querer liberar a vida das mentiras da arte” (ibid., p. 82).

Mas até que ponto as idéias de Bataille podem ser retorcidas para abranger outros fenômenos comunicativos? Até que ponto suas idéias poderiam sustentar uma discussão sobre situações de regra, que se situam no campo do discurso ou não fazem parte de um ponto-cego que sua heterologia pretende se aproximar?

Este ensaio é um primeiro passo – melhor seria dizer um engatinhar – em direção a autores que trazem outros métodos ou conceitos para se abordar eventos comunicativos que escapam à análise, à interpretação, à descrição, à necessidade de atribuição de sentido.

É uma possibilidade para se pensar fenômenos tais como a experiência estética, a experiência mística, a empatia, a identificação, a paixão, como processos comunicativos. Da mesma forma, talvez proporcione ainda uma possibilidade não convencional de abordagem de formas de expressão que não possuem um discurso bem delimitado: por exemplo, como compreender o processo de comunicação ativo durante a audição de uma música instrumental?

Ilusão de existir sem comunicação. Ilusão da descontinuidade. A comunicação estética como uma não-comunicação. Como uma outra forma de cercar o que está apenas latente. De sentir o sentir. Uma busca trágica, pois ele escapa.

Só me resta o sentimento de insuficiência. E o desejo de continuidade.

1Mestrando do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, na linha de pesquisa "Tecnologias da Comunicação e Estéticas". Atualmente seus estudos estão voltados à formação do campo das estéticas da comunicação e às relações entre experiência estética e processos comunicativos. Email mauricioliesen@gmail.com

2Cf. Caune (1997); Costa (1997); Guimarães (2006); Lopes (2007); Parret (1997); Valverde (2007).

3Muito mais próximas a análises tecno-estilísticas, do que necessariamente a teorias estéticas solidificadas.

4As citações retiradas de livros escritos em línguas estrangeiras utilizadas neste ensaio são traduções livres.

5Nunca a experiência interior é dada independente de visões objetivas: “o erotismo, sua experiência interior e sua comunicação estão estritamente relacionados com elementos objetivos e com a perspectiva histórica em que esses elementos nos aparecem” (Bataille, 1987, p. 29).

This paper aims to reflect the aesthetic experience from the communicative approach outlined by French philosopher Georges Bataille. The intention is to provoke a debate within the field of Communications Aesthetics about an aesthetic, sensitive, pre-discursive and tragic communication – from the inner experience and the eroticism.

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Submetido: 22/06/2009, aceito: 17/08/2009