doi: 10.4013/ver.2009.23.53.02
Corpo e salvação contemporâneaResumo. Parte-se do corpo e seu estatuto para pensar o que seja a “salvação” e o evitar da morte no mundo contemporâneo. O modo de tratarmos o corpo será o do mutante, aquele em que, no desconforto existencial com sua biologia, criará para si um novo invólucro, uma nova biologia, auxiliado pelas novíssimas tecnologias (biomédicas, informacionais, genéticas...). No processo sugerido, o discurso científico midiático torna-se o verbo de um saber/fazer que nos propõem possibilidades outras de sermos e vivermos no planeta. No espaço midiático, especificamente o publicitário, os modos de mutação para uma perfeita conservação são inumeráveis, contraditórios, mas agem como ímãs sobre o imaginário social. Não mais assunto de leigos, o corpo torna-se assunto de especialistas, e, de modo a render o seu máximo em saúde, bem-estar, o culto ao corpo obriga conhecimentos cada vez maiores, que dirigem os indivíduos, de modo inapelável, à recorrente temática do risco. Análise final de um anúncio publicitário onde as questões tratadas dão-se a ver.
Abstract. We begin from the body and its bylaw in order to think about what "salvation" and the avoidance of death are, in the contemporary world. The way we shall approach the body will be that of a mutant, that one in which, in the existential uneasiness of its own biology, shall create to itself a new enclosure, a new biology, supported by the newest technologies (either biomedical, informational, genetic…). In such suggested process, the media scientific speech turns into the verb of a knowing/doing, which proposes us other possibilities of how to be and live in this planet. In the mediatic scene, specifically that of advertising, the mutation ways for a perfect conservation are innumerable, contradictory, though acting like magnets towards the social imaginary. No longer a laymen’s subject, body turns into experts’ matter, and, in order to yield the most of health and well-being, the body worship requires larger and larger knowledge, which leads people, unappealingly, towards the recurrent theme of risk. Final analysis of an advertisement, where is possible to observe the questions we deal with.
Introdução
Na atualidade, o progresso do conhecimento biológico e da técnica médica não pára de avançar, e a morte, de destino inevitável, avizinha-se como mera contingência. Vivemos a época de efervescência das “tecnologias da vida”. A morte parece deixar de ser uma condição da vida, tornando-se uma fronteira relativa ao avanço potencialmente infinito da tecnobiologia. As possibilidades trazidas pelas novas tecnologias da informação (incluindo aí as biotecnolologias, nanotecnologias, engenharia genética) apontam para a possibilidade e a probabilidade de uma imortalidade em vida (a-mortalidade). Ansia-se e quer-se a “vida eterna” – mesmo que essa, no momento, seja apenas o alargamento do prazo da permanência em vida – em carne, sangue e músculos. O que se sabe é que esse tipo de imortalidade não abençoará a todos, sabe-se que o acesso a uma vida mais longa está tecnologicamente estratificado; o alto custo e mesmo a viabilidade de sua execução em massa a tornam pouco provável. Fica então como opção, consumi-la imaginariamente através das imagens produzidas pelas mídias, de modo particular nas imagens publicitárias, quando estas aliam o corpo à tecnologia (mesmo que esta tecnologia se apresente em um simples iogurte, como se terá a oportunidade de observar no decorrer deste texto) com uma promessa de mais-vida implícita2.
Torna-se possível dizer que as mídias e, por contigüidade, a publicidade, detêm hoje o discurso de salvação (salvação no corpo), prerrogativa anterior do discurso religioso, na promessa de um paraíso futuro após a morte, passando pelos modernos com a promessa de emancipação (salvação laicizada) através da revolução, chegando hoje a uma salvação anunciada pelas mídias que se fazem porta-vozes do discurso da ciência – que se traduz num discurso que nomeio tecnoteológico (Gonçalves, 2001). A partir desses deslocamentos sofridos pela “salvação” no Ocidente, a partir do cristianismo primitivo até a contemporaneidade, chegamos à centralidade do corpo. É dele agora que se irá tratar.
Com a palavra, o corpo
Corpo, objeto paradoxal: objeto-sujeito que nos habita e é habitado por nós. A um só tempo produtor e produto. Apesar do óbvio de sua presença, pensá-lo exige esforço reflexivo. O corpo aqui pensado é o contemporâneo, ocidental, resultante do encontro de diferentes discursos (biológico, social, cultural, político econômico e, sobretudo histórico), submetido a diferentes normas e disciplinas, gerenciado pelas mais díspares instituições, resultando em múltiplas corporeidades3. Corpo híbrido, mutante em permanente atualizações, seja para frutificar em heterogêneses libertadoras ou submeter-se às forças, por vezes alienantes e castradoras, do mercado e do poder político que o acompanha. As mutações do corpo (objeto-sujeito) não param nem mesmo na morte; substancialmente ausente, o corpo individual se atualiza e imortaliza nos cultos à memória feita pelo grupo sócio cultural4.
No encontro com o corpo, linhas diferentes de abordagem apresentam-se. Há os que o consideram, sobretudo, submetido à natureza (estável e uno), fornecedora de uma base pré-social e biológica sobre a qual um self e uma sociedade se constituiriam. Nízia Villaça (1998), ao pensar esta questão, chama atenção para o fato de que esta visão serviu, na modernidade, para, a partir do dado natural, produzir diferenças e discriminações como a do “corpo negro animalizado” ou do “instável e histérico corpo feminino”. É suficiente lançar um olhar ao século XX e perceber os genocídios produzidos baseados nessa visão naturalista do corpo, naturalizando os modos de ser: o Nazismo, por exemplo, parece ter suas bases aí (deturpando todo o pensamento de emancipação pelo corpo, proposto por Nietzsche), produzindo diferenças que a cultura vai tornando irreconciliáveis.
Pode-se pensar o corpo como um mapa onde se encontram geografia, biologia e história, mapa tatuado sobre os corpos. Nas rotas deste mapa podem-se localizar corpos locais, globais, híbridos de diferentes culturas e sociedades neles inscritas, condicionando mesmo sua anatomia. É possível dizer que nossa relação com o corpo, com nosso próprio corpo (no sentido mesmo dos “usos” que fazemos dele) é midiatizada pelas regras e normas sociais, sempre históricas. Deste modo, é conclusivo que toda sociedade e cultura possuem seus modos de ingerência sobre os corpos e estes restam marcados, dando a ver seus produtores. O que se quer marcar aqui é que a todo corpo e nas relações para com ele, subjaz um sistema de normas e regras de ser que são sociais, culturais, geográficas e históricas. O corpo então deve ser pensado dentro desses parâmetros, que são também éticos e estéticos.
Dando continuidade às ingerências sobre o corpo, Marcel Mauss (2003), antropólogo francês, em meados do século XX, produziu um estudo sobre o conceito de técnica corporal, onde desconstrói a aparente naturalidade intrínseca que marca os corpos. No desenrolar de seu estudo torna evidente a ingerência da sociedade sobre os corpos, demonstra como o corpo tem sido alvo das mais diferentes manipulações físicas e simbólicas em distintas sociedades (um corpo trabalhado de acordo com as necessidades emergentes do corpo social). Segundo Mauss, o corpo sofre uma série de ações baseadas na operacionalização de técnicas corporais5, técnicas essas que atravessam campos tão díspares como o esporte, o sexo, os hábitos de higiene, o comportamento à mesa, entre outros.
Nessa vertente que identifica o estatuto eminentemente cultural do corpo, campo de atravessamentos, controles e disciplinas que o transformam e o modelam, destaca-se Michael Foucault (1979, 1990, 1991, 2001), autor que, em vasta obra, enfatiza a construção social do corpo através de um discurso que o normaliza, classifica, controla. De estável e uno na visão naturalista, nesta última, construtivista, o corpo se torna maleável, fragmentado (para melhor ser esquadrinhado), profundamente instável, controlado por forças desconhecidas e que por isso mesmo devem ser contidas, enunciadas para que se possa melhor controlá-las.
Não se propõe aqui uma tese sobre a naturalidade intrínseca do corpo, nem de seu estatuto eminentemente cultural. O que se busca pensar é a figura que surge deste cruzamento, quanto mais o cultural, na forma da tecnologia, potencializa (mesmo recria) a natureza biológica do homem, não mais um ponto de equilíbrio. Constatamos desde o fim do século XIX e contemporaneamente atingindo seu auge, todo um discurso dirigido à apologia do corpo (idéia moderna ligada à propriedade e à produção). Um corpo glorificado em sua força e beleza. Fazem-se concursos para a eleição de “top-models”, meninas que contabilizam milhões pela sua forma física; os campeões do esporte são incensados pelas multidões e pela publicidade; as descobertas da biotecnologia e todas as técnicas em relação ao aperfeiçoamento de suas ações ocupam quase que diariamente os espaços midiáticos; praticar exercícios, mesmo a simples caminhada, torna-se um programa religioso em sua obrigatoriedade, um dogma que não deve ser desrespeitado, pois se corre o risco de se tornar um proscrito. De materialidade muda, o corpo passa a se identificar com o ser-sujeito, com a pessoa, designando nossa identidade mais profunda (Lipovetsky, 1989, p. 58). Todavia, o corpo cultuado e desejado é o corpo jovem, saudável, um corpo onde as marcas do tempo, das doenças e da proximidade com a morte ainda não se fazem presentes (a permanência neste corpo obriga a busca de um presente dilatado, que jogue para frente todo o repertório de riscos). Durar, ganhar tempo e ganhar contra o tempo, continuar jovem, não envelhecer. É interessante notar, percorrendo os livros de história que se debruçam sobre o assunto, que nunca qualquer civilização fez um esforço tão grande para negar a morte. Segundo Richard Pottier, “A reabilitação do corpo e, paralelamente, da sexualidade e do erotismo têm, talvez, este sentido: é preciso gozar o corpo para esquecer-se que ele é mortal, é preciso ‘estar se bem na sua pele’ [...] para se poder esquecer que ‘só há uma vida’” (1998, p. 13). Penso que podemos ir além. No contemporâneo, o corpo é forte candidato a uma a-mortalidade. Desde os processos mais ínfimos, como a aplicação de toxina botulínica (substância que paralisa o músculo atingido, provocando um estiramento da pele, minimizando rugas de expressão) até os nano-implantes dando novos ritmos ao organismo, há uma promessa (reverberada pelas mídias) de que a morte, pelo menos para os novos “escolhidos”, mostra se num horizonte cada vez mais distante e a “só uma vida”, dilata-se na permanência em vida.
Define-se então que o modo de se tratar o corpo será o do mutante, aquele em que, no desconforto existencial com sua biologia criará para si um novo invólucro, uma nova biologia auxiliado pelas novíssimas tecnologias (biomédicas, informacionais, genéticas...) que o perpassam por todos os lados e que permitirão a expansão de seus sentidos e cognição, crian-do um corpo e mente estendidos, tanto para o espaço sideral (macroscópico) quanto para o interior da carne, tornando sinfonia ensurdecedora o silêncio de nossos órgãos.
É importante marcar que o encontro do corpo do homem com a tecnociência tem resultados inesperados, e por isso, contabilizados antes, surgindo a temática do risco (Vaz, 1996; Moulin, 2008), do que pode advir das possíveis conjugações corpo/aparatos tecnológicos somadas às previsões que o conhecimento de nossa memória genética apontam como possibilidades de uma menor permanência em vida. Neste caminho “técnico”, as mídias “massivas” ligadas à informação e ao entretenimento podem ser vistas, em especial o medium televisão, como a prótese mais visível da interação corpo/tecnologia, uma prótese coletiva, que busca atingir a cada um, individualmente. Esta superprótese cognitiva vai reinar sobre todas as outras próteses, pois ela é o palco onde todas as outras se dão a ver, se colocam no mercado em que nos transformamos, ávidos consumidores; neste mercado por vezes se é oferta, por vezes, procura. Através deste palco espetacular da mercadoria o indivíduo é socializado com a Ciência, principalmente nos agenciamentos desta com o corpo. Neste viés a Biotecnologia é a estrela máxima, expandindo ao infinito as possibilidades que nos advêm deste encontro.
Como nosso corpo, as mídias são discurso, com ele, as mídias “fazem corpo”, produzem “realidades”. Dentro do discurso que as mídias proferem há vários discursos: econômico, político, cultural (mesmo que possuam nítida inclinação simulacional), científico. Diria que este último discurso tem sido junto com o da violência (própria de alguns meio) o mais sabiamente manipulado, principalmente quando a ciência diz respeito ao corpo do homem e ao corpo do planeta. Neste momento, os veículos (TV, principalmente) tornam-se o Verbo de um saber/fazer que propõem possibilidades outras de ser e viver no planeta (seja com discursos apocalípticos, seja com mensagens de salvação).
Como exemplo, pode-se citar o Canal de TV a cabo Discovery6, especificamente o seriado/documentário “Aviso de Tempestade”: diferentes matérias espetacular/jornalísticas são apresentadas, tufões, ciclones, maremotos, enchentes, avalanches de neve, degelo... ao final, há em todas as reportagens uma fala explícita, de que se determinados artefatos técnicos/tecnológicos tivessem sido utilizados, os desastres poderiam ter sido evitados e vidas poderiam ter sido salvas. É interessante que este programa mescla a fala do poder da tecnociência com atos heróicos de indivíduos, que apenas com sua força prometéica tornam os resultados desses desastres menores (imagina-se o que fariam se aliassem essa força à tecnologia). Paralela à fala explícita há uma outra implícita, nunca totalmente enunciada, que diz mais ou menos assim: a ciência é capaz de resolver todos os problemas da humanidade. A sensação é de que a Ciência é algo neutro, natural, um estar-aí que, bem sabemos, é fonte de perversas alienações a que os sujeitos ficam submetidos. Subjaz nesta mensagem um positivismo ingênuo, senão cínico, de que a ciência é tudo, contribuindo para que outras formas de saber não científicas, mas nem por isso menos satisfatórias, fiquem obliteradas. A própria existência de canais de TV como o Discovery Channel e seu afiliado Discovery Kids (a intimidade com o mundo da “ciência”, novo substrato, começa cedo) ajuda-nos a demonstrar a posição central, num mundo aparentemente descentrado, em que a Ciência ocupa no cotidiano. Caminho que parece indicar uma nova utopia.
O espelho da bruxa
Voltando ao corpo e as mídias, pensa-se que, para o narciso contemporâneo que desperta em nós a cada manhã, o espelho oferecido pela prótese midiática tem sido o da bruxa. No lugar de uma bela imagem refletida, ele nos devolve sempre uma falta, a necessidade de um reposicionamento, seja do biológico ou do nosso psiquismo. Sob o signo do mutante deve-se, incessantemente, transformar-se – a nova utopia é centrada no corpo, não um corpo da produção, mas um corpo do – e para – o prazer, do bem estar, do habitar tudo e lugar nenhum. “Saúde Perfeita” (Sfez, 1996) é o novo horizonte que expande os limites do humano. Todavia, para que a frustração não seja fatal, tudo nos é oferecido numa draconiana solicitude.
No espaço midiático e publicitário, os modos de mutação para uma perfeita conservação são inumeráveis, contraditórios, mas agem como ímãs sobre o imaginário social. A produção, ou adaptação constante e orbital a novos modelos físicos (agenciando sempre “a última novidade”, a última “descoberta” da Ciência) não deixam outra opção ao indivíduo que não a “troca de pele” incessante, num redimensionamento sem fim de seu corpo. A atualização assim é permanente, e o corpo passa a ser um laboratório (um campo de ensaios, de tentativas e erros) em retro-alimentação constante, ou seja, a cada novo modelo, novas combinações são feitas. A corporeidade assim concebida transforma-se em estratégia, na qual a realidade e o imaginário se perpassam, bem como o corpo e a técnica, produzindo um ser mutante, para alguns pós-humano – destino do homem contemporâneo.
O jogo com a aparência é encantatório, age como feitiço; por sob a pele instala-se todo um poder de vigilância, o corpo técnico como álibi permite a intrusão e faz se toda uma previsão de riscos. Há que ser vigilante se faz urgente a atenção a cada sinal, sintoma do mal ainda ignorado neste corpo-imagem que se quer transparente. A não-adesão não é opção, não há lugar para os “alienados”, responsabilizados que nos tornamos pela administração da boa forma, da saúde, da potência física, da juventude, que se quer eterna, de nossos corpos. Torna-se imoral ficar doente, velho, flácido, gordo, triste, esses se transformam nos “demais” que a era do corpo vem produzindo.
De maneira que realizemos bem a parte que nos é proposta, tornamo-nos receptáculos, consumidores de cada vez mais discursos informativos, de descobertas científicas, de cuidados médicos. Não mais assunto de leigos, o corpo torna-se assunto de especialistas e de modo a render o seu máximo em saúde, bem-estar, o culto ao corpo obriga a conhecimentos cada vez maiores, que dirigem os indivíduos de modo inapelável a recorrente temática do risco, como citado anteriormente. O homem contemporâneo preocupa-se com seu corpo, quer gozá-lo, mas ao mesmo tempo é tomado pela ansiedade que o uso descontrolado dos prazeres pode lhe acarretar: o sofrimento, a doença, a velhice e a morte antes do que seria “necessário”. Para que haja gozo nesta “só uma vida”, há que protelá-la, esticá-la, criogenizá-la, enfim, para uma vida longa e gozoza o domínio do corpo é fundamental. As mídias cumprem bem este papel ao anunciarem os novos cuidados de si.
O homem pré-moderno, ao que nos consta, não deveria se sentir bem em sua própria pele, devia, para alcançar a felicidade, livrar-se dela; a carne estava associada ao pecado, a um ser decaído, mortal. Aceitava-se a dor, a doença e a morte; a punição divina era aceita com paciência e resignação (Poirier, 1998, p. 14), acreditava-se na existência de uma alma, esta sim, divina e promessa de imortalidade para os que resistissem à carne. Diferentemente deste homem, o indivíduo contemporâneo é o seu corpo, responsável pelos processos que nele se dão. Ele não apenas habita este corpo para o usufruto futuro de um paraíso prometido; o mundo das mercadorias, das drogas eletrônicas, das tecnologias biomédicas tornou-lhe o paraíso acessível no aqui e agora, ao mesmo tempo em que lhe exige a pertença a um presente expandido, evitando um futuro não sob controle.
Voltando à questão proposta anteriormente, o modo escolhido de encararmos o corpo é o do mutante, mutante no sentido de híbrido ao tecnológico (campo da cultura), seja na economia de nossos músculos, na extensão de nossos sentidos, ou como ferramenta intelectual; um corpo que se constrói entre a natureza e o artifício em constante superposição; relação que se complexifica cada vez mais com o advento das novas tecnologias bem como pelas mudanças provocadas pelas descobertas da engenharia genética. Muda o corpo e muda o homem que se quer de outra matéria para navegar outros mundos. Sendo mais clara: o corpo como matéria biológica (manipulável), somado ao corpo produto do meio social e cultural (tecnológico) aos quais está exposto, resulta num corpo aberto à mudanças, a novos encontros e associações. Surge daí um novo estatuto do corpo na sua fusão à tecnologia, o estar no mundo entre outros corpos adquire novos sentidos e profundidades.
No caminho percorrido, apresentamos o corpo como um entrecruzar de discursos, instituições e corporeidades, um híbrido entre natureza e cultura. Indicamos também que esse corpo é falado, anunciado pelas mídias que se fazem porta vozes das possibilidades de alterações proporcionadas pelas descobertas tecnobiologicas e seus devires (potencializações ou pelo contrário, controle dos riscos), alterações que, com certeza, implicam o cruzamento de circuitos econômicos, institucionais, culturais.
O palco onde a simplificação e consumo dos discursos sobre o corpo se dão é o midiático. O percurso que aqui vamos construindo busca pensar a hibridização do corpo do homem aos artefatos técnicos, sejam estes próteses internas (colonização dos órgãos e vísceras do corpo humano), sejam próteses externas que nos ajudam a penetrar em mundos simulados onde podemos sentir e tocar como se estes fossem verdadeiros, sem um corpo real, em presença (tele-realidade e tele-presença) – próteses que nos permitem agir à distância propiciando-nos o dom da ubiqüidade. Queremos pensar a mais-valia em vida, presente nesse discurso midiático, de modo especial quando este se dá a ver na publicidade. Neste discurso tornamo-nos seres quase divinos, quase porque o discurso publicitário traz consigo um discurso de falta, de incompletude (é o que o faz funcionar). É nesta brecha, no caso específico do que aqui tratamos, hibridização do corpo aos artefatos técnicos, nesta incompletude (não por nada perdido, mas para ser ainda adquirido) que a publicidade, bem como o discurso midiático, quando este se refere a divulgação do saber biomédico, cria uma tecnologia de saber/fazer (um poder) onde encontram-se em jogo a saúde, a vida e o limite dos indivíduos. Neste movimento, cabe-nos, através desses saberes que nos são ofertados, gerir nossos corpos e as atualizações que possam nele se realizar: virtualidade de doenças que podemos vir a desenvolver por sua inscrição probabilística em nosso código genético; males que podemos adquirir por comportamentos ou hábitos inadequados a uma vida saudável ou ambos os fatores em interação, virtualidades que a tecnociência aplicada à área biomédica sinaliza quase que diariamente através dos meios de comunicação. Por meio desses discursos, tornamo-nos, nos atos de consumo, responsáveis por nossa própria gerência, gerência de nossas virtualidades. Seja em discursos de risco, seja na bem-aventurança de um mundo tecnológico, somos chamados à responsabilidade na gerência de nosso corpo-capital-virtual.
Tudo se dá como se na desresponsabilização do Estado frente aos seus cidadãos, tornados consumidores (ou vice versa) em uma economia nomeada neoliberal (e em rede), passássemos da infância (moderna) à idade adulta (atualidade): de uma posição passiva de ser cuidado (pela razão, pela história, pelo progresso) é necessário passar à posição ativa (re ativa?) de se cuidar. Da situação de “protegidos”, passamos para o reconhecimento dos riscos. Sair da tutela do Estado, passando ao mundo do livre mercado. Para aí permanecer, é preciso saber se gerir, controlar e isso não é fácil. Sem a ajuda dos meios de comunicação, “adolescentes” na gestão de nós mesmos, segundo a fala implícita desses meios, não aprenderíamos a valorizar nossos corpos, nem bem gerir suas virtualidades.
No corpo presente existe um outro (ou outros), virtual, que demanda cuidados quando a temática é a do risco; um corpo que urge se expandir, se transformar através de próteses projetivas ou intrusivas que o fazem, para alguns, pós humano, um corpo que joga com sua aparência através de plásticas, lipoaspirações, silicone, tatuagens, regimes e inúmeras outras técnicas de recriação e atualização se si. Um corpo que, para autores como Virilio7 , tende a desaparecer na busca da velocidade máxima da tecnociência.
Virtualidades
A temática do virtual tem nos acompanhado no desenrolar deste texto, nas promessas de um expandir do humano. Importa marcar que, ao nos referirmos ao virtual, o fazemos tendo em vista a sua colocação por Pierre Lévy (1998). O referido autor começa por marcar que o virtual não se opõe de modo algum ao real. O virtual é como um real que ainda não resolveu ser, ou seja, ainda não se atualizou. Neste sentido, a oposição ao virtual seria sua realização, sua atualização. O virtual não é uma ausência, uma desrealização, mas pelo contrário, ele é um vetor de criação de realidade. O virtual é força, é o que existe em potência e tende à atualização. O virtual se apresenta como um nó de tendências e a virtualização, sua dinâmica:
Lévy define o virtual e sua dinâmica, a virtualização – um dos principais vetores de criação de realidade – como algo positivo, que produz futuro. Uma das modalidades do virtual, importante para nós, o desprendimento do aqui e agora, possibilitando ao corpo conexão com o distante, urde, trama e inventa velocidades “qualitativamente” novas, tempo e espaço em caleidoscópicas mudanças, acolhendo a alteridade. Estas velocidades novas, extensões corporais oferecidas pelas novas tecnologias, surgem como promessa. Embora positive a questão, Lévy não é ingênuo e sabe que entre a heterogênese e a alienação, entre a atualização e a reificação do mercado e pares afins, a distância que os separa é muito tênue e mais uma vez, depende de nós a direção a ser tomada: é na distância entre o atual e o virtual que contabilizamos os riscos que nos poderão advir. O virtual proporcionado pelas novas tecnologias tanto pode levar o mundo em direção a uma era messiânica (includente), quanto servir de ópio para uma população colocada à margem, agindo como um estimulante à alienação e a uma esquizofrenização de seus consumidores que construirão suas próprias celas.
De qualquer forma, decadência ou ascensão, não há como refutar a importância do campo do virtual em relação à reconstrução de nossos corpos, bem como o de seu controle. Basta vermos a invasão do que antes fazia parte de nosso espaço mais privado: o interior de nossos corpos invadidos por micro-câmeras, sistemas de ressonâncias magnéticas nos construindo em dimensão numérica exteriorizáveis, mecanismos estes que permitem intervenções na reprodução da espécie, nos descobrindo como “máquinas” fisioquímicas na regulação dos humores. Tudo isto é posto à mostra e passível de intervenções. Posto ao avesso, o corpo oscila e seu sujeito também: formam Um. A pele então adquire uma aura, resplandecente, e o homem flutua em bizarras conexões. Pós-humano, anjo ou máquina.
O virtual foi colocado por suas implicações com o corpo no que afeta a percepção e a ação sobre o mundo, bem como a virtualização de sua superfície, através das imagens médicas, fazendo surgir pele sobre pele, ao tornar possível a visão de seu interior (através, como já vimos, de Raios X, scanners, ressonância magnética, ecografias...), tentando mostrar como cada vez fica mais difícil sabermos o que em nós é natureza ou artifício. Chamado também porque recoloca a temática do risco. As tecnologias do virtual são capazes de, no silêncio dos órgãos e das células, captar o que portam e já atualizam mas ainda não percebemos, bem como aquilo que lá está, mas jaz adormecido. Risco posto então no conhecimento, que a partir daí, tomamos do que pode nos advir de nossa relação mal administrada com o corpo – do homem e do planeta – no que toca ao seu entorno (comida, hábitos de higiene, vida sexual, gi-násticas, regimes), mais as virtualidades genéticas que ele porta. O indivíduo se fragiliza (Vaz, 1999) diante da carga de responsabilidades que lhe é posta sobre os ombros, no conhecimento das virtualidades de seu corpo – nada garante que se livrar dos prazeres, dos excessos, impedirá o adoecimento, a perda de vigor ou a morte prematura, apenas, me parece, alivia a ansiedade no desenrolar do percurso. É um jogo em que o seguir as regras não garante a vitória. Para que a partida vingue, a tecnociência aplicada ao jogo da vida não pára, somando ao jogo sempre novas regras anunciadas com estardalhaço em emissões midiáticas. Permanecer em vida passa então a ser um jogo em aberto – quem participa do jogo sabe que há riscos e o poder que se instala é o da informação. Democrático, em tese, pois mesmo através da redundância dos veículos massivos, o instrumentalizar as informações recebidas exige competências que a grande maioria não possui. O que acaba se dando para a grande maioria é uma administração de imagens, de superfícies; cresce a obsessão pelo invólucro, levando a comportamentos de risco – numa aparência saudável, de músculos padece um corpo que submerge. Os próprios meios de informação chamam atenção para esses excessos que ironicamente eles mesmos fomentam (reflexibilidade) e vendem (pois não é a aparência da mercadoria que fascina?).
Então, a temática que se coloca acerca do corpo e o uso de seus prazeres é a do risco – pelo conhecimento adquirido dos males que podem lhe advir de uma relação mal equilibrada consigo e com o mundo. A administração de si, tornada possível pelas informações veiculadas nas mídias, torna os indivíduos responsáveis pelo seu corpo, capital nos investimentos que estabelece favorecendo sua saúde, doenças ou morte. A medicalização toma conta de nossas vidas, neste domínio a técnica é pouco contestada, é bem-vinda. Para corrigir ou prevenir, a medicina (biotecnologia inclusa) dirige nossas vidas, exarcebando o bio-poder moderno, agora focado sobre o bem-estar do indivíduo, que, informado e responsabilizado, torna-se gestor de si.
Nesta sociedade, em que dizem que Deus está morto, secularizada, laicizada, cujas manchetes dos jornais anunciam a decifração das letras do código da vida – com um certo pudor, é verdade, pois o que separa o novo “Deus” de um rato são apenas 300 genes (isto, numa soma de trinta mil não nos parece muita coisa) – parece não nos restar outra opção que um culto cada vez maior a este que nos faz SER (?), corpo e morada do DNA. A alma transmigrou “... mudou de nome e de matéria: agora são os genes que compõem nossa alma. Eles desempenham o papel dela, são nossa essência individuada” (Sfez, 1996, p. 49).
Surge uma ideologia/utopia centrada no corpo, num corpo que deve “produzir” e manter em si saúde, beleza, vigor. Este corpo, portador da vida eterna (mesmo que a raça humana desapareça da terra nosso DNA permanecerá – não é consolo, mas a espécie está, em tese, salva) é medicalizado, estetizado, psicologizado e torna-se um consumidor (de bens, serviços, idéias, tecnologias, informações...) disposto a viver esta vida como a única. Portanto, a manutenção do corpo torna-se, obsessiva e persecutória. A tecnociência aplicada aos artefatos que trabalham para a expressão máxima do vigor humano é a que possui maior visibilidade nos mídia.
Na sociedade atual, como podemos observar, o corpo em sua materialidade, após séculos negado e escondido, surge cheio de glória. Este corpo tornado alma, signo de salvação, é mencionado por Baudrillard, já desde a década de oitenta do século passado:
Sob o signo da libertação física e sexual, a sua onipresença ... na publicidade, na moda e na cultura de massa – o culto higiênico, dietético e terapêutico com que se rodeia, a obsessão pela juventude, elegância, virilidade/feminilidade, cuidados, regimes, práticas sacrificiais que com ele se conectam, o Mito do Prazer que o circunda – tudo hoje testemunha que o corpo se tornou objeto de salvação. Substitui a alma, nessa função moral e ideológica (Baudrillard, 1991, p. 144).
Um corpo funcional, retomado em sua materialidade como objeto de culto narcisista, onde a beleza e o erotismo8 são os canais privilegiados – a sexualidade, junto com a beleza, orienta hoje por todo lugar a “redescoberta” e o consumo do corpo. O corpo, assim reapropriado, segundo Baudrillard, torna-se função de objetivos capitalistas; a reapropriação não se dá segundo as finalidades autônomas do sujeito. O que interessa é que o corpo seja “libertado e emancipado”, de maneira a ser racionalmente explorado com fins produtivistas, instituindo se um processo econômico de rentabilidade, o que de certo modo, está presente no culto à saúde e à responsabilização do indivíduo frente a ela, ao ter os preceitos a que deve seguir enunciado.
O corpo como lugar da salvação
A publicidade a seguir (Figura 1), traduz de forma límpida o que temos exposto no decorrer deste artigo, principalmente no aspecto do corpo ter se tornado o lugar da salvação. Salvação alcançável pelo consumo de objetos (tecnológicos), nova liturgia. Como sabemos, a publicidade é uma mensagem de persuasão, composta por signos icônicos (incluindo aí os plásticos) e lingüísticos, com funções referenciais e emotivas, centradas no produto e no indivíduo; a publicidade busca adesão àquilo que anuncia. Esta é sua função primeira, explícita. Os modos de realizar a adesão são variados e a persuasão adquire múltiplos matizes, com ênfase ora no narcisismo, ora no erotismo, no hedonismo, na sedução. A força do anúncio, como nos é possível perceber, não se encontra no seu conteúdo denotativo, mas nas conotações que ele é capaz de propor, através de recursos retóricos. A sugestão é a de uma mensagem segunda (a conotação), cuja função essencial é a do prazer (seja por repetir o que já sabemos, por realizar nossos desejos, por nos transportar para outro lado do espelho, seja por burlarmos as normas que nos atrofiam e sufocam no cotidiano).
Recuperei estes pontos básicos do anúncio de modo a dar continuidade e um melhor entendimento à questão proposta acima: do corpo anunciado como lugar de salvação, não mais abrigo provisório de uma alma. O anúncio apresentado é exemplar; joga com o erotismo, a sensualidade, o hedonismo, o narcisismo e a laicização da salvação. Faz um jogo levemente irônico com o corpo sagrado da religião (um corpo sem carne) e com o corpo “encarnado” pós-moderno, um corpo que se dá ao desfrute e ao prazer, mas que ao mesmo tempo se impõe limites, não para uma ascese da alma, mas para obter e manter sua saúde, beleza e vigor. Um corpo transformado em propriedade (o templo é um imóvel), mantido íntegro, de modo a manter sua rentabilidade, através de “doses diárias de saúde” (Danone®).
Mas não tenhamos pressa em nossas conclusões. Vejamos como se compõe este anúncio (aspectos icônicos, plásticos e lingüísticos). Começarei por misturar esses aspectos, apontando que é na imbricação de todos eles, aliados para a consecução de um efeito incomum, o que chama atenção neste anúncio. Parte-se do clichê da bela mulher (imagem icônica) sensual e sedutora, participante de um jogo perverso, conotado por sua posição de perfil, ignorando seu “observador” – não há troca, ela se coloca como um modelo a ser imitado, desejado, admirado, apreciado. Seu olhar dirige-se a seu objeto de desejo, o iogurte; os lábios semi-abertos (mas não ávidos) antecipam-se ao prazer de sua deglutição. O ambiente que cerca a modelo, quase todo branco (luz “estourada”) concorre para um envolvimento onírico, asséptico, ao mesmo tempo em que faz sobressair o seu belo perfil, sua pele, sua morada. A iluminação cria pontos de luz, destacando certas regiões do corpo expostas, como por exemplo, o ombro, a curva da orelha, os lábios e queixo, bem como a ponta do nariz e a região entre as sobrancelhas. Neste ambiente, a modelo, por si só etérea, toma ares de divindade, de ser iluminado. Estes aspectos icônicos e plásticos conjugam-se ao texto/título do anúncio escrito em lilás (cor espiritual): “se o seu corpo é um templo” – imagem do iogurte seguro pela modelo – “não se esqueça de rezar todos os dias”. Ora, a imagem do corpo como templo (outro clichê) encontra-se, nesta conjugação, em um contexto incomum, detonador do significado segundo do anúncio, ou seja, os anseios que perpassam o social e os valores e desejos que aí vigoram. A partir daqui, para além da mensagem de consumo sugerida pela modelo em direção ao iogurte que herda dela toda a carga de sensualidade e erotismo, e por isto mesmo será desejado e consumido, podemos descortinar os valores, a ideologia da sociedade que os produziu e consome.
O corpo apresentado e sugerido não é o corpo da criatura, criado à imagem e semelhança de Deus, corpo a abrigar a centelha divina (alma), que luta contra a presença da carne. O corpo anunciado é um corpo pagão, laicizado. O templo referido não é mais o da alma, mas o templo da química, do código genético. O indivíduo assim anunciado é instado a transformar-se em seu próprio pastor (gestor nos cuidados de si). Este corpo, auto-referente, almeja permanecer em vida com todo o vigor. Sua “oração”, o alimento desta nova alma que se reve-la em cada célula, é “uma dose diária de saúde”, oferecida aqui pelo iogurte natural Danone® (espécie de vício). A alma (corpo) laicizada não desobriga os cuidados de si, a disciplina e a deontologia moderna se infiltram: “não se esqueça de rezar todos os dias”. Este cuidado de si guia-se em descobertas científicas anunciadas via media e simplificadas na publicidade; a fé transforma-se em realidade palpável dependendo apenas da ação do indivíduo (na boa administração de sua propriedade) em direção àquilo que pode torná-lo mais potente: “um iogurte natural Danone® por dia pode não mover montanhas, mas faz seu organismo muito mais saudável”.
Na seqüência, o anúncio apresenta dados racionais do produto (referenciais), a “naturalidade do produto” é ressaltada e sua contribuição ao enriquecimento do organismo faz alusão, mais uma vez, ao discurso próprio da religião e de uma ética própria à modernidade: “quanto mais você enriquece o seu interior, mais bonito fica o seu exterior” – um exterior proposto para servir a si mesmo, sem nenhuma outra razão de ser do que se tornar imagem, simulacro (estes não envelhecem nem sentem a passagem do tempo) e fechar-se numa troca autista com o objeto. “Eu sou o objeto e me realizo nele, me estendo e potencializo através de suas conexões” – não é mais necessário morrer para transformar-se em fantasma. O autismo pós-moderno não permite que se perceba que ninguém vê mais ninguém, visto que todos olham para si mesmos. O coletivo está tecnicamente morto. Entretanto, temos uma nova referência final: ao alto, no lado direito da fotografia tem-se o logotipo da Copa do Mundo de 1998 indicando Danone® como o iogurte oficial da competição – na sociedade autista, é o consumo globalizado que faz a ligação.
Conclusão
A questão da mais-vida, do seu controle, tem sido um instrumento do poder e tem se exercido através do que nomeio a “barganha da esperança”, único Bem a restar na caixa de Epimeteu aberta por Pandora, embutida em discursos por vezes utópicos que antevêem para o Homem uma finalidade superior, seja através da religião, ou num além não religioso. No exercício desse poder, a questão da morte é fundamental, visto que o poder exerce-se num corpo e nele, como um vivo. Portanto, é no corpo que se concretiza, se materializa o controle. É no domínio dos seus usos, na regulação e normalização de seus prazeres, que se realiza a barganha da esperança.
O poder pastoral, Igreja Católica, exerceu seu domínio e poder sobre os homens, justificando-se na promessa negociada da qual era portador. Através de seus pastores, elo entre o mundo da carne e Deus, a palavra da salvação se espalhava: o corpo, matéria perecível, é mortal, mas abriga uma alma imortal (a morte neste momento é tida como lei da espécie e o desejo de mais-vida é projetado em um além). Através da enunciação de si no ato da penitência, expondo os males da carne – para ter de volta o paraíso perdido, há de se domar a carne, trazendo-a ao domínio da vontade, possibilidade de salvação da alma – o indivíduo, por meio de seu pastor, reconciliava-se com Deus. É neste lugar que se funda o poder da Igreja, cuja origem é o próprio Deus.
Com a modernidade, herdeira de um corpo tornado laico pelo pensamento Ilustrado – entre seus filósofos, ganhava corpo a idéia de que a matéria possuía uma origem natural, e não divina –, e sua aposta na razão, o homem, dotado de um corpo que se separa da alma, está destinado a viver no mundo e dominá-lo. A ciência moderna floresce tendo no Estado sua razão principal. O poder absoluto não é mais o de Deus. A Igreja passou a ser questionada como fonte de poder secular, político e econômico. Do mesmo modo, seu poder de infalibilidade é posto em dúvida. A esperança ocupa agora um novo lugar e a barganha exerce-se na gerência da vida dos homens através do regime disciplinar, no controle das populações, enfim num bio-poder, individualizante e massificante. O Corpo agora conta e almeja viver. Saber-se finito, limitado no tempo, permitir-lhe-á construir uma história, forma de realização da promessa de emancipação dos homens – essa foi a forma moderna dos homens manterem a esperança.
Na contemporaneidade, a promessa intensifica-se, e o exercício do poder – a barganha da esperança é clara –, faz-se anunciar nas mídias. O corpo, mais do que nunca, é o campo de seus investimentos, tornado para muitos única possibilidade de salvação, salvação que se faz presente na carne. Corpo individual e narcísico que busca o prazer, a beleza, a saúde e a longevidade. A detentora da esperança é a ciência somada à tecnologia; os porta-vozes deste novo Deus são as mídias distribuindo, “democraticamente”, através de um discurso de poder que nomeio tecnoteológico – une a si as prerrogativas do poder religioso de salvação, substituindo a fé pela certeza dada pela tecnociência –, os modos de fazer e agir para, até agora, uma maior permanência em vida. A esperança nunca esteve tão próxima de ser realizada.
1Professora Adjunta, área fotografia, da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:sandrapgon@terra.com.br
2O presente artigo tem por base texto apresentado na XII Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação, 2003, Recife.
3No artigo “Pensando a corporeidade na prática pedagógica em educação física à luz do pensamento complexo”, publicado na Rev. Bras. Educ. Fís. Esp., João e Brito (2004) realizam, a partir do pensamento complexo de Edgar Morin, uma interessante discussão sobre o assunto. A corporeidade é tomada como o resultado complexo da interrelação dos universos da física, da vida (bioquímico) e do universo antropossocial.
4Parece existir um paralelo invertido entre este grupo sócio-cultural e o hipercorpo proposto por Pierre Lévy (1998): o “corpo” no hipercorpo como uma chama com outras chamas; um “corpo” que talvez possa continuar a existir mesmo quando a “substância” que gerava a chama não “estiver-mais-aí”, sua passagem tornando-se permanente através de um mouse que o ressuscitará, aberto, em acolhimento a um permanente devir, produzindo, mesmo depois que a carne se fizer pó, novas configurações, vivo (ou desde sempre morto) nos circuitos que atravessam as redes imateriais através do ciberespaço (Lévy, 1998, p. 33).
5“Chamo técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tão pouco transmissão se não há tradição. É nisso que o homem se distingue sobretudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas...” (Mauss, 2003, p. 407).
6Referindo-se ao mesmo canal, Hélio Schwartsman, sem tirar-lhe os méritos frente ao que se passa em outros canais, especialmente na TV aberta, diz: “no Discovery, a ciência salva vidas, dá-lhes qualidade, explica praticamente tudo o que queremos saber e ainda ajuda a combater o crime, até assassinatos ocorridos séculos atrás, que puderam ser desvendados graças aos avanços da medicina forense. É como se a ciência ocupasse um lugar entre o super-homem e o de Deus” (Schwartsman. Perigosa falsidade. Folha de S. Paulo, 28 de janeiro de 2001. TV Folha, crítica, p. 2).
7A tele-presença, por exemplo, para este autor é desrealizante, visto que só há na presença verdadeira no mundo – no mundo que é próprio da existência sensível – pela intermediação do ego centramento de um presente vivo, ou seja, através da existência de um corpo próprio vivendo aqui e agora (Virilio, 1993, p. 104).
7 Baudrillard distingue o erótico, enquanto dimensão disseminada da permuta das nossas sociedades, da sexualidade. Há que se “distinguir o corpo erótico, suporte dos signos cambiados do desejo, do corpo enquanto lugar do fantasma e habitáculo do desejo. No corpo/pulsão e no corpo/fantasma, predomina a estrutura individual do desejo. No corpo “erotizado” predomina a função social da permuta. Nesse sentido, o imperativo erótico que tal, como a cortesia ou tantos outros rituais sociais, passa por um código de signos, reduz-se [...] a variante ou a metáfora do imperativo funcional” (Baudrillard, 1991, p. 140).
We begin from the body and its bylaw in order to think about what "salvation" and the avoidance of death are, in the contemporary world. The way we shall approach the body will be that of a mutant, that one in which, in the existential uneasiness of its own biology, shall create to itself a new enclosure, a new biology, supported by the newest technologies (either biomedical, informational, genetic…). In such suggested process, the media scientific speech turns into the verb of a knowing/doing, which proposes us other possibilities of how to be and live in this planet. In the mediatic scene, specifically that of advertising, the mutation ways for a perfect conservation are innumerable, contradictory, though acting like magnets towards the social imaginary. No longer a laymen’s subject, body turns into experts’ matter, and, in order to yield the most of health and well-being, the body worship requires larger and larger knowledge, which leads people, unappealingly, towards the recurrent theme of risk. Final analysis of an advertisement, where is possible to observe the questions we deal with.
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Submetido: 05/06/2009, aceito: 20/08/2009