doi: 10.4013/ver.2009.23.54.07
Relações entre a revista piauí e o jornalismo literário: uma reflexãoResumo. O presente artigo é uma reflexão sobre a revista piauí e tem por objetivo verificar, por meio de apontamentos teórico-comparativos, sua proximidade com a produção do chamado jornalismo literário. Nesse sentido, procura-se demonstrar que a objetividade que visa caracterizar o “bom” jornalismo pode ser trabalhada sob outro viés, pois se o jornalismo trata da vida real, também trata da subjetividade: inerentes à vida e à arte.
Abstract. The present article reflects about piauí magazine and it aims to verify if the magazine can be considered an experience in literary journalism. It aims to show that objectivity is not the only way to achieve good journalism. If journalism is about real life, there is nothing more sensible than being able to treat it with the subjectivity which is part of life and art.
Introdução
No meio acadêmico, muito se discute sobre a objetividade – ou a falta dela – na imprensa. De acordo com manuais de redação e estudiosos do jornalismo, buscar a imparcialidade deve ser a meta do jornalista. A subjetividade, no jornalismo, tem pouco espaço, ou seja, demonstrar emoções, impressões pessoais ou causar sensações no leitor – algo próprio da literatura – é condenável nesse meio.
Mas quando a imparcialidade não é suficiente para suprir as necessidades do leitor e as impressões pessoais e sensações são cruciais para o desenvolvimento de uma boa reportagem? Estes foram os motivos que deram origem a uma nova forma de escrita no meio jornalístico: o jornalismo literário. Embora exista pelo menos desde o século XIX, é na década de 1960, nos Estados Unidos, que o jornalismo literário ganha destaque. Nesta época, surge uma corrente chamada de Novo Jornalismo que traz como proposta a liberdade narrativa e condena a ditadura do lead.
No Brasil, o auge do jornalismo literário aconteceu com a revista Realidade, lançada em 1966. Em dez anos, Realidade ganhou sete prêmios Esso de Jornalismo e chegou a vender 466 mil exemplares num único mês. Em 1976, a revista fechou e, desde então, o jornalismo literário perdeu força no cenário brasileiro.
Em outubro de 2006, no entanto, com o lançamento de uma nova publicação, o jornalismo literário ganha novamente destaque por meio do lançamento da revista piauí, cujo perfil rompe com paradigmas arraigados há tempos na imprensa brasileira. Sem editorial e colunistas, a piauí dá lugar à poesia, à ficção, às grandes reportagens e ensaios fotográficos. Na piauí, a objetividade do “O quê? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê?” é deixada de lado para dar lugar à fruição e à subjetividade.
De maneira breve, este artigo apresenta uma reflexão sobre a revista piauí, com o objetivo de verificar se a publicação pode ser considerada uma experiência de jornalismo literário, procurando demonstrar que a objetividade2 jornalística é um entre os caminhos para a produção do “bom” jornalismo.
Jornalismo e literatura
Duas esferas diferentes, mas que trabalham com a mesma matéria-prima: a palavra. Assim devem ser vistos jornalismo e literatura, que mantêm relações estreitas e fronteiras nem sempre bem definidas. Se, em sua gênese, o jornalismo inspirava-se na literatura, hoje é possível dizer que o inverso também é verdadeiro.
Embora tenham objetivos distintos, jornalismo e literatura muitas vezes se confundem, pois, seja de maneira direta e comumente superficial – como é o caso do jornalismo – seja de maneira mais complexa, através da ficção – como é o caso da literatura – ambos tratam de questões humanas.
Antonio Olinto, poeta e crítico literário do jornal O Globo durante 25 anos, foi um dos precursores a tratar das relações entre jornalismo e literatura no Brasil. Segundo ele, o homem tem sempre notícias a transmitir; mas jornalismo e literatura fazem diferentes usos destas notícias. “O importante, para o artista, é colocar, na aparente gratuidade dessas notícias, um sentido capaz de permanência [...]. E o importante, para o jornalista, é realizar essa tarefa para um dia determinado e, muitas vezes, para um espaço previsto” (Olinto, 1954, p. 20).
Em sua origem, em meados do século XVIII, o jornalismo era profundamente influenciado pela literatura. Neste e no século seguinte, a presença de escritores nas redações era comum. Com o folhetim, vários escritores são revelados: por exemplo, os franceses Alexandre Dumas e Honoré de Balzac, os ingleses Charles Dickens e Walter Scott, os russos Dostoiéviski e Tolstoi, o português Camilo Castelo Branco e os brasileiros José de Alencar e Machado de Assis. Neste período, os jornais estavam muito próximos da literatura devido à linguagem utilizada e a enorme presença de escritores na imprensa.
Porém, aos poucos, a influência dos escritores no jornalismo foi diminuindo. O processo de profissionalização se intensifica e a literatura passa a incorporar um papel mais periférico no jornal impresso, transformando-se em um complemento. Segundo Pena (2006), é com essa lógica que surgem os cadernos literários na imprensa que também seguem as “regras” do jornalismo, priorizando as novidades do mercado editorial, o culto às celebridades e aos assuntos inusitados.
Mas não é apenas o jornalismo que é influenciado pela literatura, como já se disse, o contrário também é verdadeiro. A prática adotada por romancistas do realismo social, que realizam um intenso trabalho de captação, parece muito próxima do trabalho de jornalistas. A influência do jornalismo na literatura fica ainda mais evidente quando casos como o do americano Jack London são lembrados: ele foi o primeiro romancista surgido a partir do jornal. Atuando como correspondente na guerra de 1904, entre a Rússia e o Japão, escrevia reportagens vivas, que carregavam um sentido de realidade característico de suas obras.
Como tipo representativo de romancistas-jornalistas é possível citar os americanos Sinclair Lewis, Budd Schulberg, Horace McCoy e Ernest Hemingway. Segundo Olinto (1954), o jornalismo deu a Hemingway uma vivacidade vocabular fora do comum, além de uma capacidade de concisão marcante.
Outro exemplo de escritor influenciado pelo jornalismo e que não se pode deixar de citar é Gabriel García Márquez, a quem o jornalismo propiciou recursos para o autor dar validade às suas histórias. Como sintetiza Lima, “verossimilhança, é isso que aprenderam os ficcionistas com o jornalismo, um recurso para lhes dar força ao texto do imaginário” (Lima, 2004, p. 247).
Se enredos de ficção, como é o caso das obras de Hemingway e García Márquez, podem estar muito próximos da realidade retratada pelos jornalistas, quais são as características que diferenciam jornalismo e literatura? A mais evidente talvez seja a distinta relação de ambos com o real: “Enquanto o jornalismo pretende oferecer uma visão objetiva, fiel ao mundo dos fatos que descreve, a literatura procura apresentar apenas um recorte verossímil” (Castro, 2002, p. 80).
Para tratar da relação da arte literária com o real, é importante retomar o conceito de literatura, que não é unânime e muito menos estanque. Eagleton (1994) afirma que uma possibilidade é defini-la como “escrita imaginativa”, que relativiza a importância da distinção entre fato e ficção, para distingui-la de outras formas de escrita, já que há obras que são lidas como “fatos” por alguns e como “ficção” por outros (como pode ser o caso, talvez, do jornalismo literário).
Nesse mesmo sentido, Wellek e Warren (1962) afirmam que se apenas a ficcionalidade e a invenção não caracterizam a literatura, já que há casos fronteiriços...
...todas estas distinções entre literatura e não literatura [...] – a organização, a expressão pessoal, a realização e a exploração do meio de comunicação, a ausência de objetivo prático e, evidentemente, a ficcionalidade – são a reafirmação de velhos termos estéticos [....]. Cada um desses termos descreve um aspecto da obra literária, um traço característico das suas direções semânticas. Nenhum é satisfatório em si próprio (Wellek; Warren, 1962, p. 30).
Porém, quando o objetivo é diferenciar jornalismo e literatura, a definição apresentada por Eagleton (1994) parece mais esclarecedora. Segundo ele, a literatura deve ser encarada como um discurso não-pragmático, ou seja, não possuindo nenhuma finalidade prática imediata.
Ao contrário da literatura, então, o jornalismo possui função pragmática. A obrigação do jornalista é transmitir informações relevantes ao público da maneira mais imparcial possível, informações que serão úteis à vida prática do leitor ou espectador. Basta pensar, por exemplo, que se consulta os meios de comunicações para saber da previsão do tempo e das condições do trânsito, que influenciam diretamente na vida das pessoas. Em suma, “o que acontece é que o plano do jornalismo é o de uma literatura para imediato consumo [...] uma literatura dotada de uma certa funcionalidade, onde a esquematização é, sob muitos aspectos, necessária” (Olinto, 1954, p. 19).
A partir disso, pode-se afirmar que jornalismo e literatura devem ser vistos como conjuntos em intersecção, ora aproximando-se e ora distanciando-se. Como aspecto comum, jornalismo e literatura sobrevivem por fazerem uso da palavra como meio de conquistar os leitores, porém o fazem com diferentes objetivos. O encontro entre as duas esferas é enriquecedor a ambas: “Tanto melhor será o jornalismo quanto mais houver de inspiração literária. E tanto melhor será a literatura quando nela couber o que de mais há no jornalismo: a sedução” (Araújo, 2002, p. 97).
Porém, algumas fronteiras devem ser respeitadas. A fronteira intransponível ao jornalista é o cuidado com o tratamento da realidade, que não pode transformar-se em ficção. Deve-se destacar que esta realidade pode ser apresentada ao leitor de uma maneira prazerosa, esteticamente mais trabalhada e mais próxima do humano: esta é a proposta do jornalismo literário, que será abordado a seguir.
Jornalismo literário: realidade ou ficção, eis a questão
Intérpretes por natureza, assim podem ser encarados jornalistas e escritores, segundo Castro e Galeno (2002). Embora foquem os objetos de forma diferente – jornalista lida com fatos, o escritor lida com a ficção – ambos têm a função de representar a realidade. Muitas vezes, jornalismo e literatura se confundem: enredos de Stendhal ou Charles Dickens têm uma autenticidade tão profunda quanto à transmitida pelo jornalismo; da mesma forma, reportagens mais trabalhadas parecem se aproximar da ficção. Assim, não é estranho que a união entre jornalismo e literatura tenha dado origem ao jornalismo literário.
Como o próprio nome sugere, o jornalismo literário aproxima a prática jornalística da literatura. Lima (2004) o define como uma tradição do jornalismo, assim denominada por incorporar recursos e técnicas de captação e redação provenientes da literatura. Entende-se assim que o jornalismo literário não possui compromisso quanto a buscar a objetividade, conceito complexo e até mesmo controverso.
Apesar da valorização da objetividade pela grande mídia é preciso destacar que ela nem sempre é quesito básico para se fazer um bom jornalismo; da mesma forma como seguir as determinações do lead não garante a ausência da subjetividade em um texto jornalístico.
A “verdade jornalística”, transparentemente ancorada nas regras que estabelecem a enunciação do discurso [...] não se faz incontestável como se pretende. Ao contrário, é sempre questionável, atrelada que está à ambigüidade a que está sujeito o próprio instrumento de trabalho desse discurso: a palavra (Resende, 2002, p. 54, grifo do autor).
Se a própria palavra não pode ser considerada uma representação “perfeita” do mundo real, muito menos o texto jornalístico pode ser visto desta forma. O jornalismo literário considera os limites da objetividade jornalística e, assim, procura apresentar uma visão mais honesta e menos burocrática dos fatos ao leitor.
Assim, o jornalismo literário se mostra como forma de “potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, [...] e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos” (Pena, 2006, p. 13).
Dessa forma, o jornalismo literário é mais que uma ruptura com o lead e com a objetividade. Ele pretende romper com a periodicidade e a atualidade, isto é, seu objetivo é a permanência. Por isso, “uma obra baseada nos preceitos do jornalismo literário não pode ser efêmera ou superficial” (Pena, 2006, p. 15).
Com textos que emprestam técnicas literárias para falar da realidade, o jornalismo literário busca encontrar estratégias para produzir boas reportagens: “O jornalista literário não ignora o que aprendeu no jornalismo diário. Nem joga suas técnicas narrativas no lixo. O que ele faz é desenvolvê-las de tal maneira de acaba constituindo novas estratégias profissionais” (Pena, 2006, p. 15).
Por propor uma renovação da narrativa jornalística, o jornalismo literário também é conhecido por jornalismo narrativo. Esta denominação é adotada por alguns autores para evitar distorções. Para o criador e editor da revista piauí, João Moreira Salles3, há dois problemas em denominar este tipo de jornalismo de jornalismo literário. O primeiro se relaciona ao fato da palavra “literário” apontar para a pretensão de que o texto não-literário tenha a mesma duração da literatura. O segundo se relaciona ao fato do jornalismo parecer “inferior” quando comparado à ficção, como se precisasse ter a ambição da literatura para ser reconhecido e poder eternizar-se.
O jornalismo literário – independentemente da nomenclatura utilizada para denominá-lo – procura valorizar as características de um bom texto jornalístico que tenha o real como referência e a literatura como inspiração. Para esta modalidade de jornalismo, textos que tratam da realidade podem ser tão interessantes e prazerosos de ler quanto textos ficcionais. Conciliar as exigências do jornalismo com algumas das exigências da literatura é o grande desafio a que se propõe o jornalista literário.
A piauí e o jornalismo literário
Lançada em outubro de 2006, a revista piauí teve repercussão bastante ampla e positiva. Com a proposta de reunir reportagens menos factuais e mais aprofundadas, despertou a atenção de leitores cansados da pretensão de imparcialidade, supostamente garantida pela ausência de avaliações e impressões pessoais do jornalista, e desejosos por um jornalismo mais crítico e analítico.
A piauí, segundo informações publicadas no site4 da revista no início de sua circulação nas bancas, é feita para “durar um mês nas mãos dos leitores”. Segundo o diretor geral da revista, Enio Vergeiro, trata-se de uma publicação em que todo jornalista gostaria de trabalhar: há liberdade de textos e evita-se, ao máximo, cortes e mudanças durante a edição (Naldoni; Venceslau, 2006). Segundo o criador e editor da revista, João Moreira Salles, a piauí não tem exatamente uma linha editorial e quer apenas contar boas histórias com humor.
Pela ênfase nas reportagens e pelo seu enfoque diferenciado do que existe hoje na mídia brasileira, as características propostas pelo jornalismo literário aparentam relacionar-se à piauí. Com o objetivo de investigar esta hipótese, foram selecionadas duas reportagens para análise: “How do you do, Dutra?”, de autoria de Antonio Prata, publicada em novembro de 2006 e “Na moita”, de autoria de Silvia Pilz, publicada em março do mesmo ano.
As reportagens que compõem o corpus versam sobre assuntos bem diferentes. A diversidade de temas, aliás, é uma das características da revista, como aponta Salles5:
Tentamos escapar das matérias genéricas, essas que tratam “dos grandes temas nacionais” [...]. Todas as nossas matérias têm personagens, que podem ser objetos animados ou inanimados. Como já dissemos, e publicamos, de queda de ministro a odontologia, tudo pode ser publicado na piauí.
“How do you do, Dutra?” é uma reportagem-retrato a respeito de uma das rodovias mais importantes do país, que liga as capitais Rio de Janeiro e São Paulo. Nesta reportagem, o autor apresenta a paisagem e os personagens que caracterizam os 402 km de extensão da rodovia, desvendando aos poucos a sua complexidade e seu lado humano.
A reportagem “Na moita” resgata um tema que, embora tenha sido bastante explorado pela mídia quando se encontrava em trâmite judicial, em 2002, depois foi esquecido: trata-se da guarda de “Chicão”, filho da cantora Cássia Eller. Depois da morte da mãe, a guarda do adolescente foi confiada à Eugênia, viúva da cantora. O caso gerou muita polêmica, mas Eugênia conseguiu sumir do noticiário. A reportagem mostra como é a pacata vida dos dois, cuja rotina parece não fugir da “normalidade”.
A partir do estudo destes textos, percebeu-se que várias das suas características permitem relacioná-los ao jornalismo literário, são elas: a) a riqueza da narração e da descrição, b) o registro de características simbólicas, c) o trabalho com a linguagem, d) marcas da subjetividade do repórter/autor, e) o rompimento com a periodicidade e a atualidade. A seguir, as características citadas serão exemplificadas com trechos do corpus.
a) Riqueza da narração e da descrição
Segundo Lima (2004), o jornalismo impresso cotidiano padece de um mal: aprisionando-se muitas vezes na informação, deixa de tratar os acontecimentos de maneira mais enriquecedora, não permitindo ao leitor a fruição do texto. Diante desse problema, o autor aponta como forma de renovação estilística do jornalismo uma aproximação do texto jornalístico às formas narrativas das artes.
Para exemplificar, tem-se a presença de uma narrativa que se diferencia do jornalismo convencional e se aproxima do jornalismo literário no terceiro parágrafo do texto “How do you do, Dutra?”:
Ao passar o primeiro pedágio, o cinza da periferia de São Paulo vai se transformando em verde. Como prova de que deixamos definitivamente o mundo urbano e suas mazelas, surgem as pamonhas. Primeiro, Chalé da Pamonha. Depois, Rancho da Pamonha. Mais para a frente, Irmãos da Pamonha e por fim, sugerindo uma espécie de ascese pamonhal, o Paraíso das Pamonhas (Prata, 2006, p. 18).
A partir deste trecho, é possível notar que a reportagem é construída a partir de estruturas narrativas e não unicamente de trechos expositivos, como é comum nas reportagens convencionais. O repórter/autor parece convidar o leitor a abandonar o “cinza da periferia” da capital para acompanhá-lo em uma viagem pela rodovia Dutra, repleta de descobertas.
A valorização da narração – provavelmente a característica mais importante do jornalismo literário – contribui para a humanização da reportagem, levando-a a alcançar uma dimensão maior de compreensão do personagem. Outro fator que contribui para ampliar esta compreensão é o uso da descrição. È através desse recurso que o leitor é apresentado aos personagens Chicão e Eugênia, na reportagem “Na moita”.
Tanto narração como descrição merecem destaque nas reportagens analisadas. A partir da narração, é possível conhecer melhor a trajetória dos personagens, enquanto a descrição permite ao leitor construir uma imagem mental dos personagens e ambientes que compõem a reportagem. Estes recursos atuam, portanto, como elementos contextualizadores, contribuindo para o aprofundamento dos temas explorados.
b) Registro de características simbólicas
O registro de características simbólicas é não só uma característica do jornalismo literário, como também pode ser apontado como uma das principais marcas do Novo Jornalismo. Segundo Wolfe (2005), este recurso se refere ao registro de gestos, hábitos, ares, olhares, poses, estilos de andar e outros detalhes simbólicos perceptíveis no cotidiano e “[..] não é mero bordado em prosa. Ele se coloca junto ao centro de poder do realismo, assim como qualquer outro recurso da literatura” (Wolfe, 2005, p. 55, grifo do autor).
No texto “How do you, Dutra”, o registro de um pequeno detalhe faz uma revelação sobre a classe social a que o personagem Toninho pertence:
Não houve melhor época para vender pamonha do que entre 1975 e 1985. Num bom domingo, eram vendidas umas vinte mil às famílias que chegavam, [...]. Hoje, vendem umas sete mil pamonhas por domingo [...]. Não é pouco, como atestam o sorriso no rosto e o jacaré no peito de Toninho (Prata, 2006, p. 18).
Na reportagem “Na moita”, também são registrados os hábitos dos personagens Eugênia e Chicão:
Os dois levam uma vida discreta e pacata. Nos dias úteis, Eugênia sai de casa antes das sete da manhã, deixa Chicão na escola e vai para o trabalho. Volta às cinco da tarde. Se estica, o expediente, é quase sempre na Academia MiraSport, que escolheu a dedo por causa da clientela, na maioria ‘coroas buscando saúde, assim como eu’ (Pilz, 2007, p. 31).
O registro de características simbólicas relaciona-se a já referida riqueza da descrição e também ao trabalho com a linguagem. Ao fazer uso de tal recurso, a narrativa é enriquecida e afasta-se da objetividade, entendida aqui não como fidelidade aos fatos, mas no sentido da escrita “burocrática” – que obedece à prisão do “o quê, quem, quando, onde, como, como, por quê”.
c) Trabalho com a linguagem
Embora não seja suficiente em si, uma das características que definem o conceito de literatura diz respeito ao uso da linguagem. De acordo com Amoroso Lima (1969), a literatura apresenta a palavra com valor de ‘fim’ e não apenas com valor de meio. Para o autor, “literatura [...] é toda expressão verbal com ‘ênfase nos meios de expressão’” (Lima, 1969, p. 19, grifo do autor). Esta concepção permite que o jornalismo seja incluído no campo literário, se atender a exigência citada pelo autor.
A ênfase nos meios de expressão é uma característica presente nos textos em análise. Na reportagem “How do you do, Dutra?”, o trabalho com a linguagem pode ser percebido através da utilização de comparações inusitadas, como a presente no subtítulo: “É mais arriscado [e divertido] ir de São Paulo ao Rio de carro do que remar da África a Salvador” (Prata, 2006, p. 18). Além disso, nota-se a presença de descrições em que a linguagem conotativa é utilizada ao contrário do que acontece no jornalismo convencional:
Se um grupo de terroristas quisesse parar o Brasil, precisava apenas de duas bananas de dinamite: uma para cada pista da Dutra. Bum!, e 52% do PIB seria impedido de circular. Em 1999, algo parecido aconteceu. [...] uma greve geral de caminhoneiros parou o país. Começaram a tomar os acostamentos, [...], desceram de seus caminhões e, ao lado da quilométrica serpente de metal, cruzaram os braços (Prata, 2006, p. 21).
No trecho acima, o uso da metáfora “quilométrica serpente de metal” utilizada para se referir à fila de caminhões, evidencia o trabalho com a linguagem do texto.
No texto “Na moita”, esta característica pode ser notada de maneira evidente, mais através da organização da reportagem do que em trechos específicos ou na utilização de figuras de linguagem.
É importante destacar que as reportagens não apresentam lead, ou seja, não são organizadas para atingir imediatamente a expectativa do leitor em saber do que o texto trata. Não há uma preocupação em seguir o modelo da pirâmide invertida, isto é, em organizar o texto a partir das informações principais. O que prevalece é a preocupação em construir uma narrativa que instigue o leitor e que se caracterize, assim como na literatura, pela fruição.
d) Marcas da subjetividade do repórter/autor
A imersão do repórter na realidade e a voz autoral são apontadas por Pena (2005) como características do jornalismo literário e estão relacionadas às marcas da subjetividade do repórter/autor que se manifestam na reportagem.
A voz autoral marca o estilo do texto, ao contrário do que ocorre no jornalismo tradicional. Nas reportagens é possível observar marcas lingüísticas que denunciam a subjetividade do repórter. No texto “How do you do, Dutra?”, isto se manifesta por meio da inserção de comentários do repórter sobre os fatos narrados, marcados pela vírgula:
A Sala dos Milagres poderia estar tanto num filme de Pedro Almodóvar como de Zé do Caixão: pernas mecânicas ao lado de manequins vestidas de noiva; roupas de bebês e órgãos de cera; [...] tambores, reco-recos (que milagre pode ter feito Nossa Senhora envolvendo um reco-reco?) [...] (Prata, 2006, p. 20).
No texto “Na moita”, o trecho grifado denuncia o posicionamento do repórter: “Passada a turbulência jurídica, ‘numa terra em que vida íntima é aquilo que se estampa semanalmente nas revistas de fofocas e celebridades’, Eugênia conseguiu o mais difícil: sumir do noticiário” (Pilz, 2007, p. 30, grifo nosso).
É interessante destacar que o que permite a presença da interpretação do repórter frente aos fatos e a manifestação de marcas de subjetividade é a imersão na realidade, ou seja, o envolvimento do repórter com os acontecimentos – que é valorizada pela piauí. De acordo com Salles, a piauí “não pode ser escrita com o Google. É preciso sair, ver, apurar, voltar e escrever. “Nunca publicamos uma matéria sobre o Iraque de alguém que a escreveu sem pôr os pés no país”, afirma.
Outra característica que aponta tanto para a presença quanto à valorização da subjetividade se refere ao uso de citações. No jornalismo literário norte-americano atual, as citações diretas são usadas moderadamente (Lima, 2004), isto denuncia que as personagens são “interpretadas” pelo autor, que não se limita a transcrever suas declarações.
Uma evidente marca de subjetividade pode ser encontrada no texto “How do you do, Dutra”: trata-se do uso da narração em primeira pessoa. Neste texto, o repórter não é um narrador isento, mas ele também participa da narrativa e deixa que isso transpareça. Uma expressão clara da subjetividade se manifesta quando o repórter, ao narrar um encontro com o “Papai-Noel”, acrescenta à narrativa suas lembranças da infância, como se lê no trecho abaixo:
Papai- Noel e eu temos uma velha pendência, desde o natal de 1983, quando fiquei a noite em claro esperando um minibugue e, na manhã seguinte, me deparei com cubos pedagógicos. [...]. Entro. Lá está o bom velhinho [...]. Ele me olha torto. Talvez se lembre daquele natal de 1983. Eu: [...] é boa a vida do Papai-Noel em Penedo?Papai-Noel: É boa, bastante visitação. [...]Fico com pena do pobre velhinho. Morando nos fundos de um shopping em Penedo, ouvindo Oswaldo Montenegro, tirando fotos com turistas diante da lareira de celofane. Esqueço a vingança (Prata, 2006, p. 22).
e) Rompimento com a atualidade
Por tratar os acontecimentos de maneira aprofundada, buscando a humanização da notícia, o jornalismo literário pode sair da ocorrência para a permanência. A concepção de presente para o jornalismo literário é “a de um tempo atual dilatado em estendida presentificação” (Lima, 2004, p. 226).
Isto explica o fato de que os temas abordados pelas reportagens em análise – a rodovia Dutra e seus personagens e a guarda de um filho por uma viúva homossexual – tenham sido colocados em pauta mesmo sem a ocorrência de um acontecimento factual que os evidenciasse.
É importante destacar que ao visar ao entendimento da contemporaneidade, o jornalismo literário não perde a ancoragem no presente, pois o jornalista é, por natureza, o homem do seu tempo: “A atualidade do jornalista é, pois, condição essencial de sua permanência. E de sua essência” (Amoroso Lima, 1969, p. 51).
Assim, o jornalista literário se depara com diversos desafios: informar, sua função primordial, ao mesmo tempo em que contribui para um conhecimento sobre a contemporaneidade, devendo fazê-lo com ênfase nos meios de expressão, se almejar atingir o status de literatura.
Considerações finais
Aliando técnicas da narrativa literária aos propósitos da prática jornalística, o jornalismo literário aponta para a necessidade de humanização da reportagem e de um tratamento menos burocrático dos fatos. Sem perder de vista o compromisso de informar o leitor e a ancoragem no mundo real, esta modalidade de jornalismo acrescenta aos textos vários ingredientes: a subjetividade do repórter, a possibilidade de fruição do texto, a aproximação do leitor com a realidade abordada, uma maior compreensão da contemporaneidade, entre outros.
Ao aproximar a narrativa jornalística da literatura, o jornalismo literário fornece mais uma demonstração de que a imparcialidade é apenas um mito e mostra que não há problema algum em encarar este fato com franqueza perante o leitor. Posto que a verdade é inatingível é preciso tentar ao menos ver todas as suas faces (Martínez apud Lima, 2004). Deixando à mostra a subjetividade do repórter, o jornalismo não demonstra uma “fraqueza”, já que o compromisso profissional se relaciona muito mais com questões éticas do que à escrita de um texto considerado objetivo.
A revista piauí, como demonstrado por meio dos exemplos, se identifica com várias características do jornalismo literário. Percebe-se, nas reportagens analisadas, uma preocupação em informar – objetivo próprio do jornalismo – aliada à ênfase nos meios de expressão – característica própria da literatura. Mais do que informar, a revista propõe um entendimento acerca da contemporaneidade, rompendo com o conceito de atualidade e fugindo dos definidores primários. Na revista piauí, a subjetividade vem à tona de maneira explícita, não havendo uma preocupação em camuflá-la. Porém, isto não significa que o repórter é livre para inventar, pois é a ancoragem na realidade que orienta a produção do texto.
Assim, a análise das reportagens da publicação permite afirmar que a revista pode ser considerada uma experiência de jornalismo literário. A revista piauí, portanto, demonstra que a objetividade e a imparcialidade não são aspectos indispensáveis de um texto jornalístico; o que pode ser considerado indispensável, na verdade, é a referência ao mundo real. O jornalismo, mais do que ser imparcial, tem o objetivo de informar o leitor de maneira ética. E não há problema algum se for possível alcançar este propósito por meio de uma narrativa próxima da literatura, como afirma Lima (2004), a melhor reportagem pode combinar-se muito bem com a melhor técnica literária.
1Mestranda em Letras (Unioeste), graduada em Letras (Unioeste) e Jornalismo (FAG). Docente do curso de Jornalismo da Faculdade Assis Gurgacz (FAG), em Cascavel-PR. E-mail francieleluzia@yahoo.com.br
2O termo “objetividade” é tomado, aqui, não como referência ao mundo concreto, mas como uma característica do texto do jornalismo tradicional, que busca restringir-se aos objetos retratados – apresentando-os de maneira concisa e direta – evitando ao máximo a interferência da subjetividade. A “objetividade” que o jornalismo literário critica não diz respeito à fidelidade aos fatos, mas à escrita “burocrática” adotada por grande parte da imprensa. Deve-se ressaltar que o jornalismo literário não combate a referência aos objetos do mundo real, que deve ser mantida e continua sendo essencial, mas propõe uma novo posicionamento do jornalista diante desses objetos. As demais menções e críticas à “objetividade” presentes neste artigo devem ser compreendidas neste sentido.
3João Moreira Salles é cineasta e documentarista, diretor de Entreatos (2004), Nelson Freire (2004) e Notícias de uma guerra particular (1999), entre outros trabalhos. Salles é também conhecido por admirar o Jornalismo literário.
4http://www.revistapiaui.com.br
5Entrevista concedida à pesquisadora por e-mail no dia 21 de setembro de 2007. As demais menções a esta fonte também se referem a esta entrevista.
AMOROSO LIMA, A. A. 1969. O jornalismo como gênero literário. Rio de Janeiro, Agir, 64 p.
ARAÚJO, C. M. 2002. Amor à palavra. In: G. CASTRO; A. GALENO. Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo, Escrituras, p. 93-98.
CASTRO, G. 2002. A palavra compartida. In: G. CASTRO; A. GALENO. Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo, Escrituras, p. 71-84.
LIMA, E. P. 2004. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Barueri, Manole, 371 p.
MEDEL, M. Á. V. 2002. Discurso literário e discurso jornalístico: convergências e divergências. In: G. CASTRO; A. GALENO. Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo, Escrituras, p. 15-46.
NALDONI, T. VENCESLAU, P. 2006. Número 1: para quem tem um parafuso a mais. Revista Imprensa, São Paulo, ed. 218.
OLINTO, A. 1954. Jornalismo e literatura. Rio de Janeiro, Mentor Cultural, 100 p.
PENA, F. 2006. Jornalismo literário. São Paulo, Contexto, 142 p.
PILZ, S. 2007. Na moita. piauí. São Paulo, n. 6, ano I, p. 30-33.
PRATA, A. 2006. How do you do Dutra? piauí. São Paulo, n. 2, ano I, p. 18-22.
RESENDE, F. A. 2002. Textuações: ficção e fato no novo jornalismo de Tom Wolfe. São Paulo, Annablume, Fapesp, 128 p.
WOLFE, T. 2005. Radical chique e o Novo Jornalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 254 p.